Especialistas desmontam discurso catastrofista sobre o futuro do Estado-Providência
A redefinição do modelo do Estado-Providência e o futuro da Segurança Social são duas questões que têm ocupado o debate público em Portugal e na Europa nos últimos anos. Afinal, existem ou não condições para a sustentabilidade deste modelo social e para assegurar as pensões de reforma das próximas gerações? Neste dossier, a PÁGINA mostra de que forma se construiu o discurso em torno da falência do modelo social e de que forma se tem processado o desmantelamento dos serviços sociais públicos com vista à sua privatização. Destaque para as opiniões de Boaventura de Sousa Santos, professor da faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e director do Centro de Estudos Sociais, e de Alfredo Bruto da Costa, professor universitário e investigador social, que desmontam o discurso dominante e afirmam que o cerne da questão é de ordem politica e não financeira.
O debate em torno da reconfiguração do Estado-Providência e do futuro do modelo social europeu tem-se intensificado ao longo dos últimos anos. A suposta crise em que se encontra mergulhado, justificado pelo envelhecimento da população, a subida dos custos com os cuidados sociais e de saúde e o crescente desemprego, está, na opinião de alguns, a tornar insustentável para os sistemas públicos a manutenção dos benefícios sociais que caracterizam a sociedade de bem-estar construída a partir do período de expansão económica do pós-guerra. Outros, no entanto, defendem que a este argumento não é alheio o processo de privatização e de desmantelamento progressivo dos serviços públicos lentamente concretizado nas últimas duas décadas. Segundo dados da OCDE relativos a 1997, foram transferidos do sector público para o sector privado activos num valor superior a 160 mil milhões de dólares. Nesse ano, a Europa representou mais da metade dos valores privatizados no mundo. De então para cá, essa tendência consolidou-se. Ao longo da década de 80, a Grã-Bretanha assumiu-se como o farol europeu deste processo de privatização e de desregulamentação do sector público. Nesse período, o governo conservador no poder privatizou a indústria estatal, as telecomunicações, os transportes públicos, o gás, a electricidade, a água e os caminhos-de-ferro, entre outros. Seguiram-se-lhe os sectores sociais e da saúde. O estabelecimento do Mercado Único Europeu, que resultou, a partir de 1986, na adopção de directivas sobre desregulamentação dos mercados, criou a estrutura institucional e o projecto político de privatização para a concretização deste processo, que, aparentemente, parece ser irreversível. Hoje, mais do que saber aquilo que acabará ou não por ser absorvido pelo sector privado, a questão que se coloca é o que ainda ficará no poder do Estado.
Serviços públicos desmantelados em três etapas
Analisando o percurso recente do processo de privatização da propriedade pública, alguns autores defendem que ela se desenvolveu em três etapas. A primeira, já em fase adiantada, passou pela privatização de empresas públicas industriais e financeiras que se encontravam já a operar num mercado aberto. Dessa forma, a sua alienação pelo Estado parece ter decorrido de forma quase natural. A segunda fase decorre ainda e consiste na privatização de serviços públicos infra-estruturais, como a água, a energia, os transportes e as comunicações, através de três passos: a desregulamentação e liberalização do respectivo mercado, a mudança do estatuto jurídico do serviço público para empresa de capital público ou misto e, finalmente, a venda das acções detidas pelo Estado. Apesar de ter vindo a encontrar resistência por parte de alguma opinião pública, partidos políticos e organizações sindicais, o processo de alienação do património é habitualmente justificado pelas virtudes da gestão empresarial e como forma de realizar receitas para o Estado. Não raramente, os próprios governos aceleram este processo nomeando administrações que representam os próprios interesses privados interessadas na aquisição das empresas. Paralelamente a este processo de privatização de sectores de âmbito nacional, tende-se a privatizar igualmente os serviços municipais. A terceira fase da privatização está actualmente em curso na Europa ocidental e inclui sectores como a saúde, a educação, os serviços sociais, fundos de pensões e a própria Segurança Social, ou seja, os sectores base do Estado-Providência. É sob esta lógica mercantilista, incluindo no jogo da oferta e da procura uma economia que, ao longo do último século, ficara fora da regulação arbitrária do mercado, que o sector público está progressivamente a ser apropriado pelas grandes empresas transnacionais e que o modelo social europeu parece ter entrado numa fase de desmantelamento irreversível.
Portugal: um Estado-Providência que nunca o chegou a ser
André Sapir, professor da Universidade Livre de Bruxelas, membro do Bruegel (laboratório de ideias económicas com sede em Bruxelas) e autor do documento "A Globalização e a Reforma dos Modelos Sociais Europeus", defende que ?os modelos sociais que funcionam bem hoje em dia são aqueles que protegem as pessoas e não os empregos existentes. Os países escandinavos têm mercados de trabalho, produtos e serviços extremamente flexíveis, mas ao mesmo tempo que se liberalizaram aplicaram sistemas de protecção dos trabalhadores", diz Sapir. Sapir distingue na União Europeia a 15 quatro modelos: o nórdico (Escandinávia e Holanda), o anglo-saxónico (Irlanda e Reino Unido), o continental (Alemanha, Áustria, França, Bélgica e Luxemburgo) e o mediterrânico (Grécia, Itália, Espanha e Portugal). De acordo com este investigador, "os nórdicos têm uma posição invejável, com um modelo social que proporciona ao mesmo tempo eficácia e igualdade, enquanto os mediterrânicos vivem num que não lhes proporciona nem uma coisa nem outra". Quanto aos anglo-saxónicos, ?têm um modelo social eficaz, mas que não é justo?, enquanto os continentais ?proporcionam maior igualdade mas com menor eficácia". Face a esta realidade, ?o desafio é saber como transformar o modelo continental e mediterrânico em nórdico ou anglo-saxónico", diz Sapir. Em Portugal, o Estado-Providência nunca chegou a assumir-se como tal na verdadeira acepção do termo. Fruto de um desenvolvimento tardio (só após o 25 de Abril se deram os primeiros passos para a criação de um modelo social de protecção alargado), o nosso país sofre hoje as consequências de ter instituído este modelo em contraciclo com os demais países europeus. De acordo com Sílvia Ferreira, socióloga, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e autora do estudo ?As organizações do terceiro sector na reforma da Segurança Social?, uma das principais características do actual Estado-Providência português é a ?grande polarização em termos de níveis de protecção?. Assim, defende esta investigadora, ?existem para aqueles trabalhadores que se encontram melhor integrados no mercado de trabalho, uma protecção previdencial teoricamente razoável na doença, maternidade e paternidade, desemprego, velhice, invalidez e sobrevivência?. No entanto, prossegue Sílvia Ferreira, ?para os trabalhadores que estão em situação de emprego atípico ou fora do mercado de trabalho, o sistema possui uma fraca ou nula protecção?, levando a autora a concluir que ?de entre todos os países da União Europeia, possuímos o sistema de Segurança Social mais ineficaz na redução da pobreza, na redistribuição dos rendimentos e na redução das desigualdades sociais?.
Sustentabilidade da Segurança Social é de ordem politica e não técnica
Neste contexto, assume particular importância a definição do futuro modelo de Segurança Social em Portugal. Nos últimos anos, as reformas legislativas no âmbito da segurança social e laboral e o retrocesso do esforço e da responsabilidade do Estado nos serviços públicos, como a saúde e a educação, reduziram o financiamento e o acesso a esses serviços, abrindo caminho à argumentação da falência deste subsector. No entanto, de acordo com dados do governo português, a Segurança Social teve no ano passado um saldo de 295 milhões de contos, o que significa que este subsector do Estado conseguiu reunir nos cofres um excedente de 400 milhões de euros relativamente ao orçamento rectificativo de 2005. Este saldo positivo deve-se, na opinião do governo, aos planos de combate à fraude e à evasão fiscais, através dos quais foram recuperados 300 milhões de euros, fazendo aumentar para 800 milhões de euros o valor existente nos cofres da Segurança Social. Com a aprovação da Lei de Bases da Segurança Social e do acordo com os parceiros sociais sobre Modernização da Protecção Social, o governo afirma ter conseguido aumentar o financiamento e reforçado o Fundo de Reserva da Segurança Social, havendo agora perspectivas de que este subsector será sustentável nas próximas três décadas. Porém, no programa do executivo socialista para a Segurança Social explica-se que um dos objectivos para esta área passa pela ?dinamização de iniciativas que visem um efectivo funcionamento do mercado como regulador social?, já que, garante-se, ?o nosso magro Estado-Providência, como forma social e política, não pode continuar a ser o único suporte do progresso e da protecção sociais?. Para tal, adianta o documento, serão incentivados ao longo da legislatura ?esquemas privados complementares de segurança social, por forma que o Estado cubra um nível básico de prestações e o sector privado ou cooperativo possa assegurar um adicional de prestações sociais?. José Sócrates, que já foi acusado pelos partidos de esquerda de querer destruir o pouco que ainda resta do Estado-Providência português, parece assim querer ir ao encontro da ideia proposta pelo Partido Social Democrata, que defende a ?alteração da configuração estrutural da Segurança Social com vista a criar em Portugal um sistema misto, no qual se articule a acção do Estado, das empresas e dos cidadãos?. De acordo com Alfredo Bruto da Costa, professor e investigador universitário na área da pobreza, exclusão e política social, a sustentabilidade da Segurança Social em Portugal é, antes de mais, uma ?concepção de filosofia política? e não um problema ?exclusivamente financeiro ou económico?. Para este especialista, os meios financeiros para garantir a sua sustentabilidade dependem em parte do contexto económico mas, sobretudo, do ?grau de solidariedade que cada sociedade está disposta a dar?. ?É preciso abandonar, em parte, a ideia de que o vínculo laboral é o elemento fundamental de financiamento da Segurança Social. É preciso passar para um conceito baseado na cidadania, com um sistema que seja financiado por fontes de rendimento provenientes tanto do trabalho como do capital. E essa é eminentemente uma opção política?, diz Bruto da Costa. Defendendo que o discurso dominante e as organizações financeiras internacionais dão uma excessiva relevância à componente técnica e financeira, Bruto da Costa afirma que a estas ?não lhes compete discutir a filosofia política porque a sua natureza é de carácter eminentemente técnico?, lamentando, por isso, que a nível europeu e nacional ?continuemos limitados por esses aspectos, que, apesar de condicionantes, não são determinantes para a discussão?. Na mesma linha de pensamento, Boaventura de Sousa Santos, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e director do Centro de Estudos Sociais, defende também que a alegada crise do Estado-Providência e do modelo de Segurança Social ?não é uma questão técnica, mas sim politica? (ler entrevista na página 37).
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