A prova maior de que, pelo menos numa grande parte da humanidade, os espíritos dos mortos bons não regressam ao mundo dos vivos (nos recônditos da África e da América ainda se pensa que não é assim) está em que o apóstolo Pedro não assombrou o caricaturista do Papa com um preservativo no nariz, Maomé não fez explodir o estúdio do cartonista dinamarquês que o representou com uma bomba na cabeça, Cristo não reduziu a estátuas de sal os profanadores do seu templo em Jerusalém, Aristóteles e Juvenal não deram sinais de que abjuravam a mercantilização do desporto (contra a máxima ?mens sana in corpore sano?), nem Platão zurziu os estudantes que negligenciavam a Matemática, a Filosofia e a Política. Poderá inferir-se que não houve regresso porque os antigos profetas se enganaram, os deuses se arrependeram e os sábios desistiram de indicar que o caminho da felicidade se encontra através da Razão, da Verdade e do Belo (que para Aristóteles se reuniam na ?enteléquia?), como antídoto contra as ?emoções acumuladas pelo recalcamento dos condicionalismos sociais que podem levar a actos anti-sociais e destrutivos.? Ou concluir simplesmente que os símbolos e as crenças também morrem e que a novos tempos correspondem novas figurações, novos conceitos e novas doutrinas. No seus tempo, já Cícero lamentava: ?o tempora! o mores!?, Pilatos perguntava o que era a Verdade, Montaigne comparava a Razão com um jarro de duas asas, Marx postulava que a religião era o ópio do povo, Dostoievski conjecturava que se Deus não existe tudo é permitido. Mas se Deus existe (dizem-no cristãos, judeus e muçulmanos) e tudo é permitido em nome de novas verdades e razões, será consequente ridicularizar a religião do Outro, destruir o país do Outro, desprezar a liberdade do Outro, impor os valores lógicos e éticos do Eu ao Outro. E quando o Outro resiste ao Eu, se necessário, destrui-lo onde quer que resista, seja nas mesquitas de Bagdad, nas torres de Nova Iorque ou nos comboios de Madrid. Nietzsche também afirmava que ?onde está a vida, aí está também a vontade, não a vontade de viver, mas a vontade de poder?, e Marinnetti, que ?a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques?. E até o padre António Vieira, para quem ?é a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, das vidas, e quanto mais come e consome tanto menos se farta?, claudicava perante o ?direito de legítima defesa?, em nome da Pátria e da Fé, prefigurados quer pelo herege holandês, no Brasil, quer pelo usurpador castelhano, em Portugal. Que sentido da Razão, da Verdade e do Belo teriam os alemães do III Reich, quando, ao som da música de Wagner, passavam pelas câmaras de gás milhões de judeus, ciganos e comunistas aprisionados nos campos de concentração? ?Como pôde isto acontecer? qual foi a razão??- perguntava a filósofa judia Hannah Arendt, face ao julgamento, em 1963, de Adolph Eichmann, um dos mentores do extermínio. E Susan Sontag, sobre a guerra no Iraque e as barbaridades cometidas na prisão de Abu Ghraib: ?O que fizemos nós?...? O chefe do Governo do Irão, Ahmadinejad, faz as suas contas e diz que é uma mentira ?sionista? a história de que milhões de judeus foram exterminados pelos alemães; Bush, Blair e seus aliados na guerra contra o Iraque sustentam que impor os valores culturais do Ocidente aos regimes teocráticos muçulmanos é um imperativo do Bem contra o Mal; como é um plano em suspenso introduzir no mundo o paradigma americano da democracia e da liberdade, nomeadamente em Cuba e na Coreia do Norte. Se o padre António Vieira pudesse fazer um sermão deste tempo, repetiria certamente o que disse no seu: ?Todos puxam pelas armas e são armas tudo o que de mais perto se oferece às mãos: chovem os golpes, voam as pedras, uns ferem, outros caem; todos correm e acodem sem saber a quê, ou a quem, ou a causa, uns incitados do ódio ou da ira, outros sem ira nem ódio; tudo é grita, tudo desordem, tudo confusão.? Mas se acima dos espíritos dos pequenos deuses, sábios e profetas mortos que não regressaram ao mundo dos vivos, existe um Deus Maior e Eterno que se desmultiplicou para poder assistir a todo o Universo, um dia ele irá reparar no planeta Terra e, depois de saber pelos deuses menores, sábios e profetas a quem transmitira as inspirações que conduziriam os humanos à Felicidade, que estes as recusaram, falsificaram e tripudiaram ? só poderá encolher ombros com desprezo e dizer: ?Deixá-los com o seu amok. A liberdade será o seu veneno.?
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