Andara quarenta anos como professor, primeiro professor primário, depois professor do ensino secundário. Filho de gente pobre, tirara o curso do Magistério com dificuldades. Passara fome, eram os tempos, não tinha sido só ele. Banho uma vez por semana, água fria, uma indigência geral pairavam no seu país. Depois, licenciara-se em Geografia, com mais uma carga de trabalhos, mais sacrifícios, lutas. Leccionara de acordo com os princípios que aprendera, razão à hierarquia, os pais a dizerem-lhe: ?quando precisar chegue-lhe, Sr. Professor? e ?só se perdem as que caem no chão.? Aliás já conhecia estes ?ditados? da casa dos pais, e praticava-os com abundância, nos alunos, na própria mulher, nos filhos. Foi para Angola onde a vida era mais farta, os salários maiores. Gostou, mas achou que a disciplina não era aquilo que desejava. E a disciplina é tudo, pensava. Depois, num repente, resolveu conhecer Moçambique, a ?Pérola do Índico?. Desse lugar gostou ainda mais, embora houvesse a mania da Coca-Cola, essa droga para os miúdos! Jogava bridge, bebia com os amigos, comia frango com piripiri, tinha conhecimentos por todos os lados. De Porto Amélia ao Lago Niassa, à Beira, Inhambane, Lourenço Marques, à Ponta do Ouro. Viajou. Foi até à África do Sul, à Suazilândia, à Rodésia. Do que mais gostou foi da África do Sul. Aquilo sim: uma política de verdade, assumir que os pretos e os outros são inferiores aos brancos, escrever isto na lei! O Presidente Salazar, meditou, não tinha coragem para isto! Ou talvez essa atitude menos firme com os cafres se devesse ao facto de o Presidente não se deslocar às colónias? Achava estranho que os filhos fossem ?portugueses de 2ª?, mas isso devia ter explicação; confiava no seu Governo. Agora estava velho e tinha tantas dúvidas! Tinha-se dado o fim do Império, os filhos internaram-no num horrível ?Lar de Idosos?, para os lados de Belas. Pensava muito, os outros velhos incomodavam-no. Alguns filhos tinham-se zangado com ele, a mulher falecera. Não conhecia, sequer, todos os netos que sabia ter. Um dia, esmagado pelos pensamentos e pela solidão, resolveu recapitular a sua vida. Tantos alunos massacrara com pancada! E os filhos, a mulher, meu Deus! Afinal participara numa brutalização dos outros e de si mesmo! Tinha sido um carrasco? Mas fizera tudo para cumprir! ?Se soubesses quanto custa mandar, preferias obedecer toda a vida?, essa frase de Salazar andara-a ele a colar em paredes de escolas. Mas Salazar tinha preferido mandar toda a vida!? Sentiu-se mal, chamou Joaquim, o único filho que o visitava, nos últimos tempos. ?Faz-me um favor! Põe um anúncio nos jornais, ?Peço desculpa a todos com quem nunca fui jantar, apesar de convidado, aos que tratei com distância, a todos os que espanquei. Contactem-me!? Não ficara com um único amigo, em quarenta anos, só agora o percebia. Telefones, também indicara: 98 3234456, e 555 345 121. Os anúncios, assinados ?Professor José Aboim?, não tiveram resposta. O filho criou-lhe um e-mail, por piedade, mas também cínico: ?professoraboim@kazaa.com? Meses depois, foi ver o pai, já próximo do fim. Disse-lhe: ?chegou uma resposta, pai, o tipo diz que talvez te perdoe, mas não tem tempo para te visitar??
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