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O artista de cravo ao peito

Pugnando pelo Museu da Resistência que devíamos erigir na António Maria Cardoso

Saiu desaustinado porta fora, tinha acabado de dar um empuxão contra a parede, partindo-lhe a cabeça, àquele resistente que ao fim de oito dias e oito noites continuava a não querer falar. Dera-lhe todas as chances de mudar de atitude, durante uma semana foram espancá-lo não mais de três ou quatro vezes em acções bem preparadas - bem preparadas, e realmente souberam sempre suster-se antes que algum mais difícil desenlace acontecesse. Tal como agora: porque mais sangue menos sangue esparramado naquela castigada parede já não conta, o essencial é que o preso não se vá abaixo. Simplesmente desmaiou, e dois baldes de água foram o suficiente para o deixarem pronto para nova sessão. Que não será hoje; agora o chefe de brigada sai desabrido, zangado não propriamente por aquele pedaço de bruto que nem confirmar o que outros confessaram quer fazer, mas consigo próprio que há muito devia ter na mão, aceites e assinadas, as acusações que lhe foram imputadas, e não o conseguiu; nem hoje, ao oitavo dia.
Continua aí até ver, disse aos subordinados, vou à Brasileira tomar um café forte.
E foi.
Tomava-o a um canto do balcão de modo que, vício profissional, pudesse percorrer com a vista todas as mesas e respectivos ocupantes. Quando reparou num indivíduo, jovem ainda, bem vestido, sentado ao fundo, que desenrolava um canudo de folhas de papel e numa delas se punha a desenhar.
Pois, pensou. Ou professor ou aluno, é um dos tais dali das belas-artes que nem o fecho da Escola os fez tomar juízo. E de cravo ao peito! Verme nem o desgosto - se é que o têm ! - da proibição das aulas os verga.
Abstraíu-se dele, devia voltar à sede para outros afazeres mas não encontrava disposição. Não tenho agora pachorra para esses fanáticos; sou chefe de brigada e posso telefonar que me encontro mal disposto.
Telefonou do sítio habitual, aliás estratégico, junto ao nicho dos jornais; o do cravo lá estava (o insolente!) com os seus gatafunhos.
Ora pronto; pagou a chamada e limpou as mãos uma na outra, dava-me jeito ir ao cinema, no Piolho há sempre um filme em condições, é disso que preciso.
As sessões eram contínuas, no fim do filme voltava-se ao princípio, mas ele nem deixou rebobinar daquela vez. Saiu, devia afinal era de apanhar ar.
Foi andando, subiu a Garrett, deu por si no Chiado, o que faz o hábito!
Tenho de me acalmar, ali na igreja até se pode parar para pensar, não acredito em nada dessas tretas, não vou pedir nada a ninguém, os santos são de pau como diziam os parvos dos republicanos e tinham razão, vou é tomar o fresco.
Apanhou fresco e voltou à rua, embora não recuperado, irritado ou lá que era, e sem querer estava outra vez na António Maria Cardoso, na sede, o elevador até funcionou e deixou-o praticamente no meio de três ou quatro compartimentos onde jaziam outros tantos presos vindos do Aljube ou do Forte de Caxias para o interrogatório. O dele lá continuava como se nada tivesse acontecido, só o sangue seco nas têmporas a denunciar a sua casmurrice.
Então o gajo?, perguntou ao agente, agora outro como reparava, que não respondeu de viva voz; levantou e baixou os ombros, porque assim habitualmente se entendiam: tudo na mesma.
Amanhã também é dia, pode ser que o tipo se resolva; disse, e inquiriu: ó Tomás, não há mais nada para nós hoje, pois não?
E assim finalmente foi para casa, há sempre uma mulher que nos espera.
Não sabes ficar quedo?, queixou-se-lhe ela na cama, que raio de agitação, dorme e deixa-me dormir.
De cravo ao peito, o senhorito!, resmungou, vinham aí os pesadelos. Hei-de saber quem essa peça é.
Adormeceu.
Claro como água, professor nas Belas Artes, pois o que havia de ser?, a Escola ali ao lado, a Brasileira e um café forte sempre dão motivo a um bom esboço. Ou a uma inspiração, eu que o diga. Reza uma ficha de investigação recente que é suspeito de estar na base das acções e fazer a ligação para cima; bom aluno diz também que foi mas isso não interessa, quem o vai vigiar sou eu pessoalmente, não meto nisto agente nenhum, o fulano deve ser fresco, senhor do seu nariz mas talvez o venha a esmurrar contra mim. Nem vou dizer nada ao Inspector, tenho livre quase o tempo que eu quero, hei-de apanhar eu próprio a rede. O gajo dentro da rede, ou eu não seja mais o famigerado Sabino, como diz o pasquim deles. O tenebroso Sabino, hão-de passar um dia a dizer; ó larilas. E até estou a precisar de promoção, chefe de brigada de primeira há quantos anos? Não sou menos que os inspectores. Para começar, a ficha vai ficar no meu bolso, não vá o Taroucas tropeçar nela outra vez e lembrar-se de voltar ele próprio à investigação.
De momento, o principal preso que tinha entre mãos estava a pedir mais uns safanões, desmaiou quê?, nem meia dúzia de vezes, o médico passou por lá e transmitiu: podem continuar, não há perigo. A verdade é que outros em outras salas têm vindo a falar, ultimamente poucos é uma verdade. Preciso de mostrar serviço feito.
Nem por aposta.
Chamado ao Inspector, olhou-o, na retranca. Bem sei que não tenho obtido resultados por aí além, ou não temos, mas de quem é a culpa? Parece que cada vez andam mais tesos, não falam e pronto. Qual choque psicológico qual quê!, o que eles precisam é mesmo de porrada, se não, ficam para aí até rastejarem, destruídos, mas dar com a língua nos dentes é que não. Até esse tipo, por azar também meu, que acabou ejectado pela janela e caiu desamparado no chão; desde o quarto andar, e ali se via, desarticulado, mesmo em frente da maldita Embaixada, a bronca que aquilo deu - e depois dizem que fomos nós, é o costume das famílias.
O quê?
Desculpe, Inspector, vinha só a pensar, mandou-me chamar e afinal está a olhar para mim, a culpa é deles, agora os bichos nem a boca abrem, mudos!, exceptuemos um ou outro caso.
O superior não estava para preâmbulos, atirou-lhe com uma fotografia sobre o tampo da mesa. Conhece esta fronha? Alguma vez viu por acaso este gajo? Claro que não viu nem tinha nada que ver, mas a partir de agora o problema é seu, o que tem é de o apanhar. Mas há que manter estreito sigilo em alerta máximo! Peixe grosso, percebe?
Deu-lhe o coração uma pancada - tê-lo-ia? - mas possuía boca e deixou escapar um assobio fino, sibilado.
O quê, conhece o tipo? Não acredito, anda por aí nas calmas das Belas Artes, misturado com os outros, passa por um artista qualquer, são todos iguais: pastinha de laços, os desenhos dentro? alguns até professores.
O chefe de brigada, moita. Já transpirava, talvez ali estivesse a sua sorte-grande. Ainda foi ontem, ou há três dias?, e tinha na mão o tunante do cravo ao peito! Mas não se descoseu, era preciso fazer render o peixe; se dissesse que? Então o trabalhinho perdia metade do valor.
E em concreto, o que devo fazer, Inspector?
Senhor Inspector!, assim é que é. Em primeiro lugar, cautela e caldos galinha nunca fizeram mal a ninguém. Em segundo lugar,? nem lhe digo a posição do bicho na organização. Quero-o encontrado, localizado; identificado em princípio já ele está, é segui-lo, assinalar camaradas e casas, ou quer que lhe ensine o padre-nosso? Neutralizado só em última circunstância, precisamos dele activo, só se por exemplo o gajo desconfiar e tentar fugir? mas disso seria você o responsável, ninguém desconfia sem um motivo, uma pequena falha que seja, mas nestes casos as azelhices pagam-se caras, bem o sabe.
Levantou-se.
E boa sorte! Como tem aí um pássaro que não consegue fazer cantar, vou passá-lo a outro maestro; ainda estamos a tempo, o gajo é rijo, palavra que até gosto de tipos assim. E tenha você juízo, acabo de lhe dar uma boa oportunidade.
Claro, o homem tem é vida dupla; anda por aí calmamente, até para disfarçar, descontraído, à noite sabe deus. E assim é que é bom, no escuro estou eu habituado a movimentar-me!
Seguiu-o uma ou duas vezes pelas proximidades das Belas-Artes, e depois para mais longe, localizou-lhe a morada ou lá o que fosse; durante dias não entrava nem saía ninguém de aspecto duvidoso, de ar comprometido, gestos suspeitos. Quanto ao visado, habitualmente ia para casa à noite e tudo levava a crer que lá se mantinha.
Não podia ficar de tocaia tantas horas, agora era chefe mas estava sem brigada, pedir pessoal ao inspector nisso nem pensar, o caso era seu, a caça seria sua. Dir-lhe-ia que sim senhor, sei onde mora, tenhamos calma que não me foge! Omitia que quanto a ligações, por enquanto nem suspeitas. Nicles, e isso angustiava-o, começava a sentir o chão a fugir-lhe debaixo dos pés.
Deu em andar nervoso, o tipo esta manhã nem saiu, gramei aqui praticamente toda a noite, isto é, salvo dois ou três pequenos turnos para ir passar pelas brasas à sede.
Os quartos onde descansavam felizmente ficavam um tanto longe, num andar de baixo, os berros dos agentes quase não se ouviam. Às vezes pressentia-se uma cadeira no ar, atirada à cabeça dum qualquer mas afinal a esbarrar contra a parede, são espertos e sempre se defendem, o que se ouvia era o quebrar da madeira, as travessas e o assento a desabarem no chão.
Eram oito da manhã e daí a pouco passava das dez, só se ele usa alguma saída das traseiras, sabem-na toda; é só ir sondar e por hora basta, vou-me embora, pode ser que logo à noite.
E realmente viria a acontecer, pouco passaria das duas; duas da matina, chiça, um homem nem dorme, mas cego seja eu se daqui não saio inspector, senhor Inspector Sabino assim é que é, e não vás tentar pirar-te, não é cobardia nenhuma atirar pelas costas nestas circunstâncias, porra, não sou nenhum cobarde e já o tenho demonstrado.
Automaticamente acariciou a pistola, tenta, tenta só e vais ver, experimenta só, pena é se tiver de ser pelas costas, ainda gostava de te ver o focinho a esbugalhar os olhos em frente da mira. Mas antes de tudo, e o tempo escoa-se, porra, hei-de saber aonde rumas pela calada desta escuridão, encurralar depois essa tropa, eu seja cego.
E por essa fatídica hora o clandestino da noite assomou, e, grande cabrão!, vem outra vez de cravo ao peito, o provocador, filho da puta.
Um homem nem sempre se contém, a raiva desnorteia um qualquer, tinha o coldre mesmo à mão como lhe competia e ficou cego, cego e atraído pelo vermelho, um tiro contra e não se pensa duas vezes, pum, aí no meio do peito, cabrão, nem foi nas costas.
Da cabine chamou o 115, está sim?, um homem foi? suicidado mesmo aqui, em Xabregas, porra, desculpe, não disse já? Qual assassinado, eu disse suicidado, vi tudo, o gajo suicidou-se.
A porta da cabine ficou meio aberta, raros transeuntes olhavam uns para os outros e para o homem caído, o futuro Inspector metia dentro dos ombros o volume do seu corpo, enxugou as mãos suadas às abas do casaco e com este gesto apalpou no cinto o volume da pistola, serviço limpo!, disse, e safou-se rumo à sede.
Ali, na António Maria Cardoso, os colegas de nada sabiam ainda, muito menos os outros, os que lá resistiam; naturalmente, só quando fossem terminando a tortura e levados de regresso ao Aljube ou a Caxias tomavam conhecimento de que mais um companheiro tinha sido abatido, desta vez em plena rua ao romper da manhã.


  
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Fernando Miguel Bernardes
Escritor
Fernando Miguel Bernardes
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