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Conhecer o passado - II

Temos estado a discutir (ver crónica anterior em http://www.apagina.pt/arquivo/FichaDeAutor.asp?ID=706) alguns problemas que põe o conhecimento do ?passado?, do ponto de vista de um arqueólogo.

Qualquer processo de inovação consistente (apoiada na herança) implica, simultaneamente, respeito pela ideia do(s) outro(s), e vontade de a(s) superar, ou de lhe(s) apresentar versões alternativas. Sendo esse equilíbrio tensional o ponto de chegada (e não, como alguns hoje julgam, na sua inocência, um ponto de partida) é menos provável (ao contrário do que muitas ideologias de hipervalorização da juventude, ou da revelação ?publicitária? de novos talentos, ou simplesmente do marketing que faz da arqueologia uma forma como outra qualquer de ganhar dinheiro e/ou notoriedade) que se produza nas primeiras décadas da vida activa dos indivíduos enquanto investigadores, mas mais na fase da maturidade, em que a pessoa teve tempo (até psicológico) para absorver o essencial do já escrito sobre um certo assunto, e, ao mesmo tempo, para consolidar as bases da sua própria proposta pessoal supostamente inovadora.
Um dos becos sem saída seria pensarmos que alguma vez atingiríamos uma ?teoria da sociedade humana? absolutamente consensual e insofismável, a qual depois permitisse desdobramentos conceptuais no tempo (história, incluindo a denominada pré-história) e no espaço (geografia).
De facto, teríamos logo, à cabeça, por começar por discutir o próprio conceito de sociedade, e pensar se não seria melhor, em muitos casos, substitui-lo por ?sociabilidades? (no plural) (Strathern, 1988, cit. por  Rapport & Overring, Anthropology. The Key Concepts, Londres, Routledge, 2004, p. 342).
 De facto, outro beco sem saída é a ideia de que poderíamos projectar no passado, como se fossem entidades essencialistas trans-históricas, concepções do senso comum, que parecem inscritas na própria biologia (esta mesma vista como não ideológica), como por exemplo, entre muitas outras concepções binárias, a polaridade ?homem-mulher?. Ou, como referi, a própria noção de ?sociedade?, que em geral a nós nos parece uma evidência inquestionável.
Há uma coisa que sabemos, a partir da história, a partir da filosofia, a partir da antropologia (basta ler o filósofo francês Michel Foucault, ou o antropólogo britânico Tim Ingold ? este último não traduzido em Portugal - , por exemplo). A cosmovisão própria da sociedade ocidental contemporânea, a quem devemos a nossa tradição cultural e científica ? nomeadamente, a laicidade, que vai permitir a denominada ?libertação? do indivíduo e se relaciona com a chamada ?emancipação da mulher?, mas também de muitas outras orientações de vida e ?opções? identitárias - é específica, típica, da nossa sociedade apenas.
Portanto, qualquer que tenha sido a ?realidade? do passado (ou melhor, qualquer que seja a forma por que optemos por o re-presentar, hoje) ? nomeadamente a do passado pré-histórico - ela não se pautaria, com uma probabilidade que roça a certeza, por valores idênticos aos nossos, uma vez que muitos destes são recentes, históricos, contingentes, mesmo na nossa tradição cultural.
Por outras palavras, sabemos hoje, graças ao acentramento que a ciência nos permitiu, que muitas coisas que julgávamos saber sobre o passado não eram mais do que projecções ingénuas e simplistas da nossa ?filosofia espontânea?, que não é, nem natural, nem universal, mas relativa aos nossos hábitos de pensar isto é, ela própria exótica.
Por exemplo, e para me referir à minha área de trabalho, para se fazer bem aquilo que se convencionou designar ?pré-história? (o estudo das sociedades pré-estatais), é preciso passar por uma antropologia, e sociologia, do nosso próprio processo de ?fabricar? essa pré-história. E essa antropologia/sociologia conecta-se obviamente com opções filosóficas (que no meu caso se orientam por uma perspectiva muito influenciada pela visão fenomenológica). Sem isso, provavelmente apenas ?daremos voltas à arena? como ?animais cegos?.
A arqueologia, invenção da sociedade ocidental contemporânea (v. Julian Thomas, Archaeology and Modernity, Londres, Routledge, 2004 ? um livro muito importante que devia ser traduzido?), projectou compreensivelmente no passado visões da sociedade (e em particular das construções e relações do ?género?, ?sexo?, etc.) que são euro-centradas na nossa modernidade.
Só lentamente, graças ao trabalho de inúmeras ciências, e ao amadurecimento da reflexividade crítica, se tem vindo a consciencializar da ingenuidade dessa colagem, permitindo-nos separar-nos da infantilidade da projecção, na realidade do outro, da nossa própria realidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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