Tudo o que existe é destinado a ser percebido (Arendt)
O que percebemos é registrado como imagens do que se apresenta no mundo e do que o representa, inclusive as imagens mentais e sonoras que constituem os signos.
As imagens das máquinas, como constatou Cyrulnik, nos têm servido de modelo para explicar o psiquismo humano. O cérebro, segundo Bérgson, é cinematográfico. Tal metáfora transporta a projeção de imagens em movimento, conjugando luz e sombra, ao processo pelo qual as imagens recolhidas pelos sentidos são processadas, editadas e organizadas. O que percebemos é registrado como imagens do que se apresenta no mundo e do que o representa, inclusive as imagens mentais e sonoras que constituem os signos. Assim, palavras também são imagens. Algumas nos acolhem e impulsionam, outras nos amedrontam e paralisam, mesmo que provisoriamente. Chegado o tempo do ensino formal, a criança se vê compelida a entrar, entre temerosa e desejosa, no mundo da escrita. Mundo de gente grande, em se tratando das crianças burguesas, desejosas de crescer. Mundo do outro, com outros usos de linguagem, em se tratando das crianças das classes populares. Os modos como as crianças percebem os rituais de iniciação à cultura escrita podem ser diversos, produzindo efeitos distintos: da elaboração dinâmica de imagens mentais que instigam à curiosidade e à invenção, ao refreamento do pensar diante da palavra escrita percebida como imagem estática, sacralizada. Podemos indagar que efeitos de sentido experimentam crianças de classes populares que parecem encalhar na imagem da escrita como cópia, sem se arriscar à descoberta e à invenção. Estaria sendo cristalizada a imagem de fixidez do registro, limitando-a à memorização mecânica do já dado? Recentemente experimentamos o protocolo de leitura interrompida de uma história com uma criança de 3o. ano de escolaridade, que ainda não lê, perguntando-lhe: O que aconteceu depois? Foi preciso insistir muito na dramatização para que a menina se permitisse imaginar e adivinhar o que teria acontecido a seguir. No entanto, fora da escola, essa mesma criança domina os códigos do seu mundo, interage com situações adversas e inventa soluções diante dos desafios. A invenção é inerente à vida, à linguagem e ao movimento do pensamento. Crianças, como os poetas, criam metáforas, a despeito de sua classe social, como se observa nos seguintes exemplos. No primeiro, um menino burguês maravilhado diante de uma fogueira chama o adulto a compartilhar sua emoção: «Olha ali! os vaga-lumes estão saindo da fogueira e voando pro céu.» No segundo, outra criança pobre responde por escrito à pergunta da professora sobre o que sente quando tem que escrever: «Eu me sinto vendo uma gaivota voando no céu e tendo que pescar um peixe pra vender(1).» Tais imagens traduzem experiências de realidade, diante do mundo em movimento. Ao experimentar sentimentos, a imaginação opera, a intuição vai além do já sabido, apreendendo tensões seja entre morte e vida, no caso da fogueira; seja entre força regulatória e energia libertária no caso da escrita. Penso, com Ricoeur, que o processo metafórico, envolve aspectos emocionais, imaginativos e cognitivos implicados na criação. O sentido transportado nas metáforas vivas figura pictoricamente e revela um insight provocador de novos insights. Abrir espaço à poética do pensar-criar é protocolo de permanente invenção na escola como na vida. Fica-nos o desafio: ensinar a escrever sem prejuízo do frescor da expressão oral que traduz movimentos do pensamento, da emoção e da imaginação. Afinal, a linguagem, como jogo, se não prescinde de regras, não vive sem a turbulência da criação.
(1) A frase trazida pela professora foi revisada para que sobressaísse a beleza da imagem e não os equívocos ortográficos.
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