entre o sonho e a utopia
Quando o poeta José Vultos Sequeira, natural de Mora (Alentejo) e andarilho de muitos anos por Lisboa, publicou Praça do Sol (1991), com ilustrações de Figueiredo Sobral, creio ter sido dos poucos de lhe deram atenção e o saudei em termos entusiásticos, ficando à espera de um novo livro que confirmasse as mesmas qualidades poéticas. Passados mais de dez anos surge este Homem da Fábrica, com chancela da ?Utopia?, para de algum modo reafirmar a sua condição de poeta-operário que, na lúcida consciência de assim viver, quer consolidar uma ?poética? de combate e de intervenção, sem esconder nunca os sonhos e as utopias que se erguem como presença comovida de tantas emoções e sentimentos:
os motores fazem tremer o ar e ecoam aos meus ouvidos como o ribombar dum trovão o frio atravessa o telhado e as paredes o calor do maçarico aquece-nos as mãos o fumo do ácido muriático penetra-nos na garganta e as horas passam pesadas como chumbo ou como o ferro quente quando com a tenaz e o martelo resiste à nossa força. Dividido em sete partes (?O Corpo da Oficina?, ?Rosto Operário?, ?Ninguém Dirá o Teu Nome?, ?O Suor do Teu Rosto?, ?No Prumo das Casas?, ?Oficinas Gerais? e ?O Operário Continuado?), este novo livro de Vultos Sequeira reflecte a melancolia de uma condição simples e humilde, disposta a tudo pelo trabalho e nos sinais de dor e sofrimento, mas sempre em solidariedade com os outros e no sonho de que o mundo se emende e traga melhores dias a quem vive entre o sonho de uma vida difícil e a utopia de tudo se poder alterar:
aqui estou quase como quem está em lugar nenhum céu cinzento sobre telhados vermelhos olhos da terra apagados uma melancolia de nevoeiro está dentro do meu coração é um suspiro a terra o ferro e o suor misturam-se no meu rosto.
Não porque o poeta de Homem da Fábrica queira testemunhar apenas o mundo em que vive ou viveu, na evocação de quem está mais perto de si, mas na forma de captar o sentido menos conhecido dos ofícios e lugares o que se exprime é ainda e sempre essa melancolia presente nas mãos gretadas que ?afagam o ferro / e sonham a música duma boca sem fome? e na sentida utopia de que ?há-de haver um dia / em que os olhos feridos / hão-de ganhas asas / e ser azuis?. E não deixa de ser importante salientar que, no acto de transfigurar as suas renovadas experiências, a poesia de Vultos Sequeira atinge uma intensidade poética que, na imagística objectiva que utiliza e na insistência dos vocábulos de que se serve (?ferro?, ?tenaz, ?maçarico?, ?martelo?. ?chave de fendas? e outros) , se revela afinal como ponto de confluência entre o modo de viver, sentir, reflectir e se comover na esperança de haver ou chegar um outro tempo: mas há-de haver um tempo um tempo feito com as nossas mãos em que um horizonte sem limites penetrará pelas janelas adentro dará uma nova cor aos nossos olhos fará nossos gestos mais lentos mais cheios de música.
De facto, José Vultos Sequeira revela-se como um poeta que sabe fazer as contas da sua vida, nos caminhos de outros rios e lugares, ofícios e ocupações, mas a irregularidade de publicação tem impedido que ocupe posição mais destacada na poesia portuguesa. E, nos diferentes paraísos redescobertos e nada artificiais, o poeta confirma em Homem da Fábrica ser esse o seu caminho para se redimir de alguma forma de desassossego e de espanto ou de interpelar o mundo e melhor se fazer entender, no modo de ser visível ??o que no invisível se vê?, como dizia Pessoa. Ou ainda em memória do Poeta de Mensagem alcançar o propósito de ser bem legítimo compreender, talvez com alguma ironia, a desordem posta na ordem e avançar por entre o sonho e a utopia, ou assim explicar como essa viagem sentimental se desdobra por entre lembranças e na evocação de quem se perdeu numa Lisboa que é evocada em dois dos melhores poemas deste livro: ?tudo tão feito de nada / e o cimento e as pedras / e as tuas mãos / de sangue e pó amassadas / bebe uma cerveja - dizem-te / e por um momento respiras / olhas a festa do sol / enquanto os relógios rolam / e Lisboa junto ao rio / te acena maternal e debruçada para longe?. E, ainda na memória sentida de Lorca ?a las cinco de la tarde?, falar do modo como em Lisboa se vive ou se morre: ?Lisboa / apressada às cinco horas da tarde / às cinco horas da tarde cansadas / às cinco horas da tarde / quando o dia começa a declinar / Lisboa às cinco da tarde / deixa-me inclinar a cabeça nas tuas colinas?. Portanto, é pelos fios da memória que, com toda a lucidez, José Vultos Sequeira procede ao registo de um ?discurso? poético em que tudo perpassa pelas várias partes deste livro em que as imagens se sobrepõem como se um indefinido círculo poético se pudesse desenhar pelo que ficou guardado, exprime em imagens de nítida fidelidade e rigor e com a amarga consciência das pedras que ficaram espalhadas pelos caminhos. E esse sentido de redescoberta impõe-se na razão de descobrir em todas as paragens os sinais de andarilho de outras peregrinações ou proclamar ainda os mesmos afectos e uma diferente memória das coisas em que se determina uma pessoal poética que se afirma expressiva e rigorosa num livro que, no fim de contas, é corolário de uma experiência enriquecedora no plano humano e literário, como se observa num dos últimos poemas:
a oficina é o mapa onde aprendeste a ler o rosto do mundo estradas foram dar a ela e estradas dela partiram se quiseres saber vais a esse livro esse livro de suor vontade querer pertencer a uma classe pertencer ao mundo pertencer nada lá está apagado continua operário continuado.
JOSÉ VULTOS SEQUEIRA HOMEM DA FÁBRICA, poemas. Editorial Utopia / Amadora, 2004.
|