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Do trabalho à ética: as novas tecnologias desafiadas

A crença num progresso ?unidimensional? e ?permanentemente rentável?, que desconcertou o anjo de Klee na versão melancólica de Walter Benjamin, deu origem a horrores que nem a imaginação fervente de Goya antevira e que, no caso da Segunda Guerra, necessitou da sintaxe picassiana para simbolizar em Guernica o irracional corporificado.

Boa parte dos conceitos manuseados pelas ciências sociais, de uma forma ou de outra, podem remontar a autores que, por razões diversas, são considerados clássicos. Isto não significa, quanto a mim, que a relevância de uma formulação teórica deva decorrer tão-somente do fato de ela ser antiga. A exaltação por critério de antiguidade, a par das linhagens nobilitadas, é coisa mais própria às ordens que se ?enobrecem? com os adornos do suposto ?sangue azul?. O mesmo vale para as iniciativas que se limitam a ?santificar? autores. Trata-se de um procedimento que não se coadune com a laicidade da análise social. O que conta para avaliar a vitalidade intelectual de um conceito, é a recolocação que dele é possível de ser feita na abordagem de novos fenómenos. Isto é, de como ele pode ser útil na análise de novos processos sociais.
Decerto que isto acontece com noções como as de trabalho, desenvolvimento e ética. Remontando-se por detrás dos tempos presentes, encontra-se frequentemente esta tríade conceptual. Foi assim que, na pena de Marx e de Weber, os contornos da racionalidade formal e da racionalidade substantiva, embora não de modo semelhante, foram discutidos, indagando-se sobre algo nada irrelevante: será possível ir mais além da racionalidade formal, da produtividade pela produtividade, e inquirir sobre os porquês e os para quem do desenvolvimento? No século passado, principalmente em sua primeira metade, os fundamentos desta indagação eram bastantes perceptíveis. A ?todos? assustava que a civilização industrial, ou mais propriamente interesses sociais e econômicos a ela vinculados, estivesse a configurar um panorama  fantasmagórico de uma civilização de Molochs que devorava os seus frutos. In extremis, o absurdo se expressou pela linguagem bélica: a velha lição da ?diplomacia pelas armas?. O século XX foi um século de terríveis guerras. O Ocidente ?civilizado? produzindo a barbárie. A crença num progresso ?unidimensional? e ?permanentemente rentável?, que desconcertou o anjo de Klee na versão melancólica de Walter Benjamin, deu origem a horrores que nem a imaginação fervente de Goya antevira e que, no caso da Segunda Guerra, necessitou da sintaxe picassiana para simbolizar em Guernica o irracional corporificado.
É evidente que muitos dos problemas do século passado persistem nos dias actuais, num mundo agora, conforme determinados entendimentos, pós-industrial ou pós-qualquer outra coisa. Exemplos empíricos disso estão aí aos montes. As assimetrias nas relações entre e intra países têm produzido jactos de desigualdades. E, no Iraque, o Ocidente azeita a sua acção com sangue e petróleo, marchando sobre os cadáveres da matança que promove para cumprir a sua suposta ?missão civilizatória?. Os avanços tecnológicos permitem às armas uma precisão de extermínio como jamais visto, sendo tal precisão, absurdamente, comemorada de forma efusiva. Em outra frente, os avanços tecnológicos também são invocados para justificar os despedimentos, o aumento dos índices de desemprego. O que se diz que é que as novas tecnologias escasseiam as oportunidades de trabalho, e que isto é algo ?natural?.
Voltemos ao início. Perante tal fatalismo, não se pode senão recolocar a conceptualização clássica, devidamente contextualizada, claro, em torno do trabalho, do desenvolvimento e da ética. Pôr a questão de se ir além da racionalidade formal é, hoje, decerto, um imperativo categórico para que a análise social escape à languidez que, pela impotência, faz com que o contentamento com o fatalismo ganhe status de construção científica. Last but not least, na relação entre trabalho e ética, impõe-se a necessidade de uma oscilação discursiva em direcção à esta última, no sentido de se chamar a atenção para a pertinência de se estruturar um padrão de mediação que se ancora na busca de sentido ontológico, e portanto atribui relevância à primazia do humano sobre o sistémico, e não o inverso.
Dessa forma, as novas tecnologias são desafiadas -  ou, mais propriamente, os interesses político-económicos que lhes são subjacentes. Afinal, nas contendas do movimento da história, não existem sujeitos ocultos. O vir-a-ser só se descortina pela acção dos intervenientes sociais.


  
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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