?O que vendemos é ...tempo disponível do cérebro humano?. O que fez escândalo na declaração de Patrick Le Lay, o presidente da TF1, foi o que ela continha de verdade e de mentira . Mas, o importante é saber se esta afirmação pode ser o entreabrir de uma friesta para discutir uma crise bem mais grave. Mas antes perguntemo-nos: se isto fosse dito por um dos directores de uma das nossas televisões - e poderia ter sido - teria causado o mesmo escândalo que em França? O presidente da TF1 apresentou-se a si próprio como um comerciante de ?tempo de cérebro humano?, uma espécie de atenção muito receptiva. Realmente, o que se pretende cobrar no meio das ?pompas? televisivas é imaterial, não é susceptível de ser quantificado e é muito volátil. O científico das medidas de audiência é muito fictício. Apesar de ?apanhado? pelos chamados programas de divertimento, este acolhimento receptivo pode ser desligado a qualquer instante dos objectos propostos; os telespectadores não são todos idiotas. A disponibilidade real deste ?tempo de cérebro? é pois uma probabilidade inverificável. É esta quimera que as televisões vendem a peso de ouro aos anunciantes. Os seus discursos são pois apenas publicidade, mentirosa, que visa sobretudo agarrar os clientes. Um escândalo embaraçoso, pois manifesta uma ideologia ignóbil ? da qual não tem monopólio: considerar os telespectadores como uma mercadoria. Através da ?venda da audiência de massas?, tudo se passa como se a direcção da cadeia de televisão prostituísse os seus telespectadores aos industriais. Ou as emissões são destinadas a ?preparar? os telespectadores cada vez mais para a chamada ?telerealidade?, que não é mais do que uma encenação da prostituição do intimo. O telespectador é o cruzamento de duas prostituições: numa, é a mercadoria prostituída, sem se aperceber, na outra, é o consumidor de uma prostituição televisiva, sem de facto o querer. Na aparente banalidade da definição ? confirmada recentemente- do ?negócio? da TF1, que não só abrange todas as cadeias de televisão mas também os seus públicos, encontra-se formulada a última conquista do capitalismo: o pensamento íntimo considerado como uma ?mercadoria?, cujo comércio supõe uma espécie de consentimento algures entre o dado e extorquido, uma prostituição. Podem dizer que exagero quando faço a analogia com a prostituição. Que este é um comércio de relações sexuais , num contexto de violência mais ou menos aparente. Uma analogia é uma identidade de relações. O ponto comum - que permite e justifica a analogia - é o aviltamento. Esta não é arbitrária nem moral; tem um ideal comum (mesma vaga) no qual o aviltamento tem lugar. Aviltar-se é vender a um preço vil o que não tem preço. A relação sexual é, idealmente, livre e feliz. É estritamente íntima, pessoal, no seu sentido mais forte. A dignidade pessoal joga-se aí . A coisa tem um preço enquanto que a pessoa não tem um preço, tem um valor absoluto, tem um ?fim em si?, como diz a filosofia clássica. A venda da relação sexual é necessariamente um aviltamento, porque a sexualidade é intimamente pessoal: não pode ser nem uma coisa, nem uma mercadoria. Na prostituição televisiva catódica, os sujeitos exibem a sua intimidade (não só física mas também psíquica); são pagos em dinheiro simbólico: o prestígio e prazer de serem vistos por milhões de pessoas, o famoso quarto de hora de celebridade - e também em numerário, nos jogos televisivos e nas ?oportunidades? laterais. Ninguém tem nada a propor no mercado do trabalho, podem sempre exibir numa das zonas quentes televisivas existentes. A mensagem implícita de todas estas emissões é esta: ?consome a prostituição!?, ?goza com a relação de prostituição de outrém!?; ?admite ser prostituído!? Na prostituição televisiva sub-catódica, os telespectadores põe à disposição o seu pensamento, deixando-se seduzir e capturar por programas excitantes mas não em excesso - não é necessária muita atenção. A mensagem implícita é: ?avilta-te!?, ?aceita considerar-te uma mercadoria!?, ?admite ser prostituído?. Isto é a crise: a extensão do domínio do prostituível. Com isto, o capitalismo abriu um dique que podíamos considerar inexpugnável, o do eu; a televisão ultrapassou a fronteira que contém e protege o íntimo. O mais íntimo, o próprio coração do íntimo, não é o nosso corpo. O mais íntimo são os nossos pensamentos e sobretudo o que eles têm de absolutamente pessoal: a representação de si. A grande operação da televisão é entrar no sujeito e dar-lhe o esquema segundo o qual deve compreender o seu próprio ser, a norma à qual deve conformar a sua soberania. Esta norma, este esquema, exprimem isto: o ser do sujeito é mais uma mercadoria e como tal é vendável; como é um bem imaterial, caracterizado pela soberania, é preciso que consinta a sua própria venda, o seu próprio aviltamento.
Despacho da AFP de 9 de Julho de 2004, declarações do director da TF1:
?Há varias maneiras de falar de televisão: mas, numa perspectiva?business?, sejamos realistas: no essencial , o negócio da TF1, é ajudar a Coca-Cola, por exemplo, a vender o seu produto (...). Ou, para que uma mensagem publicitária seja aceite, é preciso que o cérebro do espectador esteja disponível. As nossas emissões têm por vocação torná-lo disponível, isto é, diverti-lo, descontraí-lo entre duas mensagens. O que vendemos à Coca-Cola é tempo do cérebro disponível.(...). Não há nada mais difícil do que obter essa disponibilidade. É aí que se encontra a mudança permanente. É preciso procurar permanentemente os programas que rendem, seguir as modas, surfar sobre as tendências, num contexto onde a informação se acelera, se multiplica e se banaliza.? O presidente da TF1, para tentar atenuar todo o chinfrim produzido pelas suas declarações, deu uma entrevista à revista Télerama, a 8 de Setembro, onde declara: ?Somos uma grande cadeia popular e familiar cujo objectivo é agradar ao maior número de pessoas para atingir um máximo de audiências.(...) A lógica da TF1 é uma lógica de potência. Vendemos aos nossos clientes uma audiência de massas, um número de indivíduos susceptíveis de ver um spot publicitário. Para os nossos anunciantes, o tempo de antena representa apenas ?contacto com os clientes?. Sem comentários. Já viram o que eles pensam de nós?
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