Apresentação e notas de SERAFIM FERREIRA
Não interessa nesta breve apresentação fazer a história sobre a leitura de algumas dezenas de cartas que guardo de Vergílio Ferreira e as anotações que entendi introduzir para o seu mais claro entendimento na distância dos anos que correram. Mas importa acentuar que todas as cartas se revelam de facto importantes para a clarificação das atitudes assumidas pelo autor de Mudança em tempo de polémicas e comentários, tendo sempre merecido da minha parte a melhor compreensão e amizade no apoio e reforço das suas posições contra os ventos que sopravam de vários quadrantes, quando havia muita gente não perdoava ou tolerava que, arrancando a seu lado nos anos "heróicos" de 40, tivesse depois invertido noutro sentido a agulha da sua aventura literária. Mas afinal isso são contas de outro rosário que Vergílio Ferreira com toda a verdade esclareceu em muitas páginas de Conta-Corrente e agora não interessa repetir. Porém, o que sobreleva da leitura das Cartas de Vergílio Ferreira é esse sentido de companheirismo e de atenção para com os outros que, ao contrário de muitos dos seus detractores que mal o conheciam, se não cansaram de apregoar ser ele um homem de ódios antigos. E claro que não era verdade. Porque basta ler com atenção algumas das suas Cartas para se entender como essa generosidade se estendera, no meu caso, na troca aberta de ideias, confissão de projectos, sugestão de livros, leitura de alguns dos seus romances em primeira mão, enfim, hábitos e práticas de uma amizade e camaradagem literária que não se mostravam comuns entre nós, sobretudo em escritores já prestigiados e consagrados como no caso do autor de Alegria Breve. Por isso, julgo interessante que, em memória de Vergílio Ferreira, dê a conhecer duas dessas Cartas (uma hoje e a segunda no próximo número) das muitas que guardo comigo: no fundo, oferecem uma outra imagem e revelam-se como o gesto e o modo de ser de um dos mais excepcionais criadores literários do nosso tempo. Ainda e sempre na memória destas palavras de Garcia de Resende numa carta a dom Francisco de Castelo-Branco, camareiro-mor de el-rei dom João III, datada de Évora, Novembro de1535:?Se cartas não fossem cartas, muitas vezes escreveria a V. M., como desejo, mas porque o são o não ouso de fazer, pois as não leva o vento, como palavras e plumas, antes se guardam tão bem, que a todo o tempo se pode pedir razão de como se escreveram e por que as escreveram?. Meu caro Serafim:1 Recebi e muito lhe agradeço a página do "Jornal de Notícias"2.No acaso dos dias, os desencontros são a sorte dos encontros e às vezes, sim, o inverso. Eis porque o encontrar-se V. ainda comigo, a despeito dos dias e seu acaso, não deixa de me impressionar. Devo agradecer-lhe isso também?3 Mas creio que a espontaneidade se não agradece, porque escapa à nossa deliberação. Já o dizê-lo publicamente procede do deliberar e por isso é de agradecer. Todos os dias aguardo notícias de "Alegria Breve" - em provas, sobretudo.Já o leu todo? E chegou a fazer as pazes com ele? A sua opinião desfavorável sobre o livro tem-me preocupado bastante4. Vale-me um pouco a ideia, assim reconfortante, de que muito provavelmente esse livro encerra a minha aventura no romance. Deste modo, se ele estraga o que já está feito, será só ele a estragar. Aliás o meu propósit o não nasce daí: nasce de que o que tinha a dizer já o disse. Os meus romances não são um inventário, mas a expressão de um processo de mim, ou seja do que em problema em mim se processou. O romance-espectáculo assenta a objectiva para o que espectáculo lhe é e assim ele se pode desdobrar no 1 + 1.Não assim no meu caso. Por isso dificilmente imagino que um novo problema, ou um seu aspecto, se me imponha ainda depois do extremo a que "Alegria" me levou. Escrevi ao Costa Dias para casa dele, por supor que assim mais depressa ele receberia a carta. Mas como não obtive resposta, receio que esteja em férias. Está? Escreva e conte coisas. Abraços para os amigos e para si do Vergílio Ferreira.
P.S. - Que tal o livro do Urbano? E porque foi ele fazer um filhoà "Portugália"? Divorciou-se da "Bertrand"? Ou é filho extra--matrimónio? Folheei o livro aí e pareceu-me com interesse. Leu?5 1. Carta datada da Praia das Maçãs-Fontanelas, 10.Agosto.1965.2. Refere-se ao meu artigo de crítica a Espaço do Invisível-1, no Suplemento Literário do Jornal de Notícias, 29.Julho.1965.3. Talvez estas palavras se justificassem pelo tom do meu artigo ou dissessem respeito à atenção que dispensava aos seus livros no que dependia de mim dentro da "Portugália Editora".4. Confesso que na primeira leitura Alegria Breve me não agradou muito. E daí este reparo que faz à opinião que lhe exprimi sobre o livro, já em fase de edição, que contrariava de alguma forma o entusiasmo que nele colocava. Mas, na sua releitura, acabei por ser um dos leitores mais calorosos desse romance e disso dei conta num longo texto crítico no suplemento "Vida Literária" do Diário de Lisboa, 9.Dezembro.1965.5. Breve referência ao livro de Urbano Tavares Rodrigues, Os Dias Lamacentos, então publicado na "Portugália".
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