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Política de Truffaut

Para o Fernando Pinto Basto, por todas as conversas-discussões sobre a nossa paixão comum

Primeiro uma nota pessoal. Há 20 anos estava a trabalhar no Algarve, mais concretamente em Loulé. A meio de uma aula uma funcionária veio-me entregar um telegrama. Curto, claro. ?Morreu FT. Sentimentos. Bjs?. Foi assim que tomei conhecimento da morte de François Truffaut. Neste ?departamento? confesso que apenas três mortes me deram a volta ao coração, como se costuma dizer. E a primeira foi esta. As outras foram as de Kubrick e a de Marlon Brando.Truffaut político. A fórmula pode surpreender, pois o realizador passa por quem preferiu a acção no cinema à acção no mundo, opondo-se assim à posição que Jean Luc Godard é suposto representar. Ao evocar a relação de François Truffaut com a política não pretendo falar apenas das intervenções explícitas do cidadão Truffaut, como a assinatura do Manifesto dos 121 contra a guerra colonial da Argélia ou a venda de ?La Cause du Peuple?, logo que o jornal maoista foi proibido, nem mesmo dos gestos mais directamente ligados ao seu estatuto de realizador, como o papel decisivo na contestação depois do golpe contra Henri Langlois - director da cinemateca francesa- no início de 1968 ou, em Maio, a implicação na interrupção do Festival de Cannes (diz-se que até trepou pelas cortinas das salas de projecção!). O que me interessa aqui focar é a relação do Truffaut cineasta com a política.Para tentar compreender a sua posição é necessário perceber aquilo que para ele era um grande contra-senso: a diferença entre as palavras ?político? e ?militante?. Truffaut não foi, nunca foi, um militante. Foi exactamente o contrário. E numa época (os anos 60 e 70) onde apenas se concebia a relação com a política sobre a forma militante, ele passava por apolítico, então um adjectivo o mais pejorativo possível. O cinema de Truffaut é exemplarmente uma obra que ajuda a perceber o que opõe estes dois termos que parecem feitos para se aliar - dizemos ?militante político?. A política tal como se encontra na obra de François Truffaut leva-nos para o significado  etimológico do termo, à ?cidade? no sentido da filosofia grega, isto é, a ideia de uma colectividade de indivíduos livres, construindo, sem se negar como sujeitos, os modos de viver em comum.. O militantismo é o contrário: a escolha por um grupo de indivíduos de se juntarem num colectivo que tem a proeminência sobre eles, a decisão de abdicar de toda ou parte da sua autonomia, a integração num corpo por maior que seja, ao serviço de uma causa considerada digna do sacrifício da sua própria liberdade.A isto, o vagabundo Truffaut, o desertor Truffaut, o agitador Truffaut será sempre refractário. Desde ?Os 400 golpes?, cujo discurso era de revolta contra a instituição escolar, contra a instituição familiar e a evasão da instituição carcerária, ele o proclamava. E mesmo correndo o risco de cair na psicologia simplista, a relação (biográfica e nos seus filmes) com a família ocupa um lugar essencial. Truffaut é contra a família instituída, a que preexiste. Mas é por uma família em construção, como organização de encontros, de cumplicidades, de trocas entre indivíduos admitidos e respeitados como tais. As suas duas primeiras ?famílias de eleição?, a oferecida por André e Janine Bazin e a dos ?Cahiers? serão as suas primeiras manifestações. Mas pôr-se-á de maneira mais decisiva a relação com a famosa e problemática ?grande família do cinema francês?. Esta família tinha os seus códigos e ritos: o autor de ?Une certaine tendance du cinéma frainçais ?torna-se o seu detractor mais encarniçado. Ei-la, graças aos golpes certeiros da Nouvelle Vague, posta em xeque. Torna-se possível construir uma outra família, uma outra relação - articulando esta nova ?família? nacional a outras , à escala internacional. Truffaut tornou-se o artesão desta edificação. È preciso ler o que é sem dúvida o seu mais belo livro, a sua ?Correspondence?, para se compreender a amplitude da energia desenvolvida nesse sentido. Não existe contradição, contrariamente ao que se tem dito e escrito, entre a personagem ?negativa? da adolescência e a ?positiva? da maturidade, mas os dois tempos de uma mesma relação ao detestado como dado, desejado como construção.Esta relação com os outros, que inscreve como pontos cardeais opostos mas nuca antinómicos solidão de cada um e a esperança das colectividades de indivíduos, transparece  em toda a sua obra. O relacionamento e a dificuldade ? ?une joie ET une souffrance? segundo a fórmula consagrada- de uma construída com os outros são por princípio o seu projecto de cinema. Entre estes ?outros?- a alteridade não é uma abstracção em Truffaut-, as mulheres, as crianças e os mortos têm um papel, conforme os filmes, principal. È possível aplicar a esta obsessão uma leitura psicanalítica fundada na sua infância pessoal, mas ela tem, quanto a mim, um horizonte mais colectivo, mais vasto. O interesse, tantas vezes referido, pela representação dos ?procedimentos?, pelo ?como isto funciona?, reenvia sobretudo para a representação do que liga os humanos conservando contudo o que os separa - exemplo típico: o sistema das cartas enviadas por ?pneumático? em ?Beijos Roubados?, mas também a importância dada ao correio, às estações telefónicas, aos tubos nas paredes para ouvir à distância, o incrível trabalho sobre as diferentes formas da voz-off... ou ainda as manifestações do que constrói os indivíduos como membros de uma comunidade possível, o que os aproxima sem contudo acabar com o que os separa. As palavras, a fala. A única fraqueza de ?Fahreneit 451? é de o dizer demasiado explicitamente.E se o cinema pode parecer como um mundo ideal no imaginário de Truffaut, esse mundo que ele canta em ?A Noite Americana? onde mostra o seu artifício e os seus limites, é porque só no cinema é possível cumprir, no tempo de uma ficção clássica, o tempo, o ?nem contigo nem sem ti? que leva ao princípio da existência: nem numa fusão infinita que é a negação de si e do tempo nem a separação que, pior do que a morte, traz a marca da condenação, da loucura e da traição.No número de Julho-Agosto de 2004, o realizador de Taiwan Hou Hsiao-hsien na secção ?Truffaut vu par...? escrevia:? Numa lenda chinesa, há um rei que domina o mar, chamamos-lhe o rei- mar- dragão. Um dia, a sua filha, princesa do mar, casa-se com um intelectual. O rei, decepcionado com este casamento, decide encerrá-la num palácio. Para salvar a sua mulher, o intelectual imagina então esvaziar a água do mar enchendo grandes caçarolas e fazendo ferver a água até à evaporação total...Um imortal, posto ao corrente desta história, pensa  dar uma ajuda com um passe de mágica na sua caçarola. Quando a temperatura da água na caçarola aumenta um grau, o mesmo acontece à agua do mar. Rapidamente, a água da caçarola entra em ebulição então o mar agita-se cada vez mais, como se fosse atravessado por um tornado abrasador. Assustados, todos os mamíferos do mar abandonam-no.Para tornar o mar calmo o rei envia a sua filha a terra, para se reunir ao marido. Desde esse momento, este passou a ser conhecido pelo ?homem que fez ferver o mar?. Os homens e as mulheres do cinema de Truffaut são como este ?homem que fez ferver o mar?: têm uma paixão pelo amor. Num certo sentido, não seria Truffaut esse homem??


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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