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Raoul Walsh; Errol Flynn e o 25 de Abril

?Objective, Burma!?  de Raoul Walsh foi editado em DVD há alguns meses. Comprei-o. Foi uma viagem no tempo. Lembro-me de o ter visto na adolescência na televisão num programa chamado 7ª Arte, que deu a conhecer à gente da minha geração algum do melhor cinema feito em Hollywood nos anos 30, 40 e 50. Tinha-me ficado a imagem do Errol Flynn muito suado, sujo como nunca o tinha visto. Lembrei-me de um texto de Jorge Silva Melo publicado no ?Público? de 4 de Março de 1995, com o título ?Ó caminho de vida nunca certo? e que guardei. É esse texto que gostaria de partilhar convosco.
? Objective, Burma!? (1945): é o paradigma do filme de guerra centrado no cumprimento de uma missão e baseado na sua árdua execução. Uns pára-quedistas  têm que destruir uma estação nipónica e deveriam, depois, ser repescados de avião. Só que não se pode aterrar ? e ?a meio caminho das suas vidas? ? aqueles homens vão errar ?na selva escura?, por entre ?grandes e gravíssimos perigos?, ?tanta guerra, tanto engano?, tanto pântano e riacho, nunca certo que está o ?caminho da vida?.
Como?...Dante e Camões para falar deste filme em louvor do esforço militar americano na Birmânia que até oculta a participação inglesa ( e assim foi proibido no Reino Unido, quando da estreia)? Este filme que ?muitos e conhecidos amigos? de Cintra Ferreira (também ouvi a história, será verdade?) ?garantiram que era exibido aos soldados portugueses antes da partida para as colónias?? E eu, refractário ao serviço militar, que à continência nunca achei graça, que nunca votei Eanes, o do peito feito em cima de carros, que nunca consegui acertar o passo..., comovo-me e exalto-me com este filme, ?verdadeira profissão de fé na hierarquia militar?(Cintra Ferreira)?
É que a aventura dos homens do capitão Nelson (um Errol Flynn realista, longe do ferrabrás tão nosso amigo, por exemplo, do ?Gentleman Jim? do mesmo Walsh) é uma pura aventura bélica que nenhuma outra intriga vai ?romancear?. E é filmada didacticamente, vejam a demorada descida dos pára-quedistas. Uma aula? Não falta um gesto, não falta um corpo, todos os soldados respondem à chamada. E o que outros resolveriam pela elipse- para fazer avançar a imperiosa ?intriga?- recusa-o Walsh por uma espécie de obsessão minuciosa. Como a caça à baleia no ?Moby Dick? de Melville, ou as cotações da Bolsa de ?César Birotteau? de Balzac, a expedição é aqui documentada em todos os seus gestos. Disse ?gestos?, não disse ?feitos?, Walsh filma gestos, apenas gestos, filma ?todos os gestos?, prefere a ?reportagem? à ?narrativa?, e por isso cinge o filme às personagens e a um imenso off  que só trespassa o ecrã pela sumptuosa banda sonora.
E é assim (por ser tão concreto...) que, como os grandes épicos, Walsh transforma a tão exacta guerra que vemos numa longa caminhada metafísica que é tão-só uma marcha cansativa (extraordinário ?travelling  em que Flynn vai dando quinino aos soldados com os pés na água), um suor no rosto, um último estertor, um trabalho monótono e o cinzento de que Deus se ausentou. E eles têm de continuar pelas selvas à espera de um avião (presença de Deus, aqui, como depois para a Harriet Anderson do ?Atrás do espelho? de Bergman...), abandonados, morrendo, sobrevivendo. Até que o céu parece florir em centenas de pára-quedistas, divina, americana Graça.
Limitando-se ao observar dos gestos (isto acontece e mais isto e mais isto), distanciando-se das relações causa-efeito da ?narrativa? (isto aconteceu porque antes tinha acontecera aquilo), Walsh filma uma aventura bélica (como todas, não é? ?A mais alta forma do drama é a do homem em perigo?, Hawks...). E é assim que este filme pergunta e responde àquele engulho que tantas noites nos atormenta, a ?meio caminho das nossas vidas?: que é que um gajo anda aqui a fazer, ?bicho da terra tão pequeno??
Só que, humanista rubensiano, Walsh nunca subscreveria tão belo verso,. Preferiria um verso coxo ele que nunca hesitou perante o ?feio?: ?Bicho da terra, sim, mas tão grande?.
Os homens sem Deus de Walsh serão irmãos dos vagabundos de Godot,; caminham, esperam, morrem sem sentido, um deles dirá mesmo: ? A arte militar é uma coisa que os soldados não compreendem?. E o seu filme é sobre os que não compreendem, aqueles para quem os dias não têm fim e os pés têm bolhas, os que obedecem e dizem piadas e morrem, os que avançam pelos pântanos e de quem ficará apenas a chapa com o nome. As chapas que Flynn mostrará dizendo :?Custou isto?. Seco, lacónico, metálico(ah, a fotografia de James Wong Howe!!!), feito de coisas, de actos, feito de rostos vividos (vejam como o rosto suado de Flynn se confunde com o dos outros soldados e ele parece um daqueles actores não actores que por estes anos aparecem em Itália...), é um filme que vê a vida (a minha vida, a minha  como a tua) como uma militar missão, lenta, penosa, divertida e estúpida, trivial e calorosa, longa caminhada sem norte, escura noite em que os corpos se desfazem e o único favor que se pede é o que Jacobs pede a Nelson, numa das mais belas cenas do filme e do cinema:? Faz-me um favor, mata-me?.
Este filme de propaganda está longe de conceber a ?Pátria- ou o Estado ou Prússia...- como fim último do homem?.
É que os homens têm corpo. E é o corpo que vence a adversidade, esse corpo que vence a natureza, que vence o medonho silêncio de Deus, esse corpo viril que é o fim último do homem de Walsh. Por isso, neste filme sublime, ele prefere filmar a marcha aos ataques, prefere ater-se às coisas em vez de justificar conflitos. Por isso mão tenta ?dramatizar? pela planificação- ele vindo do mudo, e que, entre os grandes, foi o que talvez mais e mais resistiu à ? teatralização/broadwayização? que o som trouxe quer para a planificação, quer para o argumento, quer para representação. A montagem deste filme, a escala de planos e o ?tempo? das sequências- muito, muito lentas- têm a verrumo os grandes poemas sinfónicos que foram os últimos filmes mudos  e está longe da ?planificação utilitária? que o sonoro iria impor e a TV normalizar. Tudo neste filme é construção rítmica, alternância de timbres, insistência temática (Walsh e Dovjenko, todos por e um por todos?). Como se Walsh quisesse filmar o próprio movimento e não o seu reflexo.
Um poema sinfónico, este filme castrense? E agora, que a música toca, poderei falar da minha juventude? É que vi este filme no Condes em 65. Dias antes vira «Un condamné à mort s?est échappé »,  de Robert Bresson. E andava a ler (em francês e latim) Júlio César. E nunca vi dois filmes mais próximos...e quem acredita em mim quando tal digo? E nunca vi dois estilos mais próximos (o exacto César, o rude Walsh?). Um filme de exteriores (o de Walsh), um de interiores (o de Bresson?), ambos filmados com a mesma atenção não às acções mas ao acumular de gestos, ambos tratando do ?silêncio dos Homens?, ambos modesta e obstinadamente filmando homens abandonados por Deus e trabalhando para que ?o vento sopre onde queira?. E se, ao sair de Bresson, me precipito a ler Pascal, ao sair do Walsh penso é na prosa exacta do César. Júlio César, Walsh? E se disser que o que mais me toca é o Walsh?
Porque não canta o ?esforço de um homem só?, porque não descreve uma conquista ... Ao filmar a deriva de mais uma patrulha perdida, ao filmar a ?hierarquia militar? como um colectivo, é o ?grupo? o que Walsh exalta (chama-lhe ?espírito de corpo?, os tropas?). E se há filme onde ?nenhum homem é uma ilha? é este, feito de planos médios, o mais democrático dos planos, com mais do que uma personagem em campo, filme em que a própria vedeta (Flynn vedeta de Hollywood e capitão Nelson) se vai diluindo no esforço humano (sobre-humano) dos seus homens. Até ser uma mão com umas chapas.
Não fosse a ideia original do argumento ser de Alvah Bessie, acabado de chegar a Hollywood, vindo das Brigadas Internacionais...E, se é verdade que os capitães de Abril viram ?Objective Burma!? antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)...Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: ?Um gajo tem de fazer qualquer coisa? ?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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