Nos últimos dez anos, tanto na Europa como em Portugal, acentuou-se o processo de sobreescolarização, isto é, a compulsiva tentação de conferir à escola funções acrescidas de regulação e integração sociais?Nos últimos dez anos, tanto na Europa como em Portugal, acentuou-se o processo de sobreescolarização, isto é, a compulsiva tentação de conferir à escola funções acrescidas de regulação e integração sociais, ainda que, amiúde, tal processo tenha uma orientação descendente, próprias das mudanças por decreto. Assim, a progressiva perda de influência das instituições socializadoras como a família e o parentesco, a religião, as tradições e comunidades locais e o trabalho tornam imperativa a concentração no saber propriamente escolar de um conjunto de competências doravante naturalizadas com a afirmação da universalidade da escola. A redução do educativo ao escolar é correlativa da redução do jovem ao aluno (o «ofício de aluno» é um complexo rol de atitudes e tarefas), num momento, em que, paradoxalmente, os usos e apropriações estudantis da escola adquirem um cunho utilitarista e convivial, ao nível dos significados sociais negociados e produzidos nos quotidianos escolares. Diversos são os modos de relação com a escola, num continuum que pode oscilar entre a recusa intencional e a aceitação activa, passando por atitudes e padrões de investimento cínico e instrumental até fenómenos de «adesão distanciada». Tomando como ponto de partida as experiências escolares, no que elas possuem, simultaneamente, de escolar e de não escolar, importa compreender trajectos e projectos, vivências e representações, percursos identitários, narrativas e discursos «na» escola, «sobre a» escola e «a partir da» escola. Fundamental, nesta linha, o entendimento de que o processo de massificação (ainda tardio, desigual e incipiente, em Portugal), conduz à diversificação dos perfis e trajectórias estudantis, cruzando o peso das origens sociais e da socialização primária (a par de outras determinações, como o género e a etnia), com os mecanismos de socialização por antecipação face às diferentes percepções de um mercado de trabalho volátil, precário e tantas vezes desqualificado e desqualificante, pondo em causa, precisamente, a utilidade de novas funções que visam reforçar o papel integrador e universal da escola. Com efeito, experiência escolar e experiência juvenil formam um nó intrincado, já que o prolongamento da primeira dilata a segunda, ditando à escola a sua polifonia, enquanto espaço internamente regionalizado e diferentemente representado, negociado e vivido pelos agentes sociais estudantis, no interior de subculturas, onde emergem tecidos densos de significados simbólicos, na sua panóplia estilística, ritualística e imagética (tantas vezes formas imaginadas de resolução de conflitos ou «problemas»...), traduzindo um desigual volume de recursos e capitais (classe, género, etnia...), mas, igualmente, ensaios de expressividade e autonomização de uma tipicidade juvenil com sentidos próprios, através do feixe de constrangimentos e possibilidades permanentemente produzidos e reproduzidos na espacialidade e quotidianeidade da vida social. As subculturas juvenis encontram na escola um cenário de interacção que permite a apresentação de si (individual e grupal), a territorialização das práticas e o accionar de elementos centrais na mundividência juvenil, nomeadamente um «ethos» associado ao individualismo relacional/convivial, à hexis corporal, à cultura-diversão e a um quotidiano sócio-centrado. Usar e fazer a escola, no prisma da construção social e cultural dos significados que os estudantes lhe atribuem, permite, ainda, um olhar fino sobre a intersecção entre a organização formal/«oficial» e a organização informal e subterrânea da instituição central do Estado moderno, mediante a revisão das «regras do jogo» do próprio campo escolar, numa altura em que novas e subtis diferenciações se fazem sentir (por escola, por área de estudos, por turma, por mecanismos de selecção das clientelas escolares, etc.), legitimadas por uma cobertura oficial (naturalização das diferenças sociais, tidas como meras diferenças cognitivas ou de competências de aprendizagem) que tende a reduzir a complexidade e o qualitativo das realidades escolares a um número «mágico» num ranking que estrutura a oferta e procura escolares numa espécie de mercado. Bibliografia: AFONSO, Almerindo Janela (1999), Políticas Educativas e Avaliação Educacional, Braga, Universidade do Minho; ABRANTES, Pedro (2003), Os Sentidos da Escola - Identidades Juvenis e Dinâmicas de Escolaridade, Oeiras, Celta; CORREIA, José A. e MATOS, Manuel (Orgs), Violência e Violências da e na Escola, Porto, Afrontamento; DUBET, François (1991), Les Lycéens, Paris, Seuil; PAIS, José Machado (2002), Ganchos, Tachos e Biscates - Jovens, Trabalho e Futuro, Porto, Ambar; PERRENOUD, Philippe (1994), Ofício de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar, Porto, Porto Editora; WILLIS, Paul, Learning to Labour : How working class kids get working class jobs? Ashgate, Aldershot
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