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?Sabemos que podemos viver juntos?

Todos (?) queremos um ?happy ending? para Chipre. Com certeza ninguém mais do que  os artistas e realizadores cipriotas, que vivem há mais de três décadas sob ?o mais intratável problema da Terra?. Becos sem saída penosos não dão grande divertimento, especialmente para os próprios cipriotas. Os pesadelos com mortos e desaparecidos estão suficientemente frescos, sem ser necessário filmes para o  lembrar. E para que são precisos poetas quando são as próprias pessoas normais que nos podem dizer que viver numa ilha como esta é como ?partilhar um útero com um gémeo morto??
Em 23 de Abril do ano passado, a fronteira que separa a última cidade dividida da Europa abriu-se. Nicósia viveu a sua noite ?Cinderela?, assim chamada porque toda a gente teve de voltar ao seu lado à meia- noite. 30 anos de medo e tensão acumulados que se seguiram à invasão turca de 1974 e a sangrenta partilha dissolveram-se em lágrimas, abraços e partilharam a necessidade cipriota de prestar uma hospitalidade sem limites.
Era este o milagre de Chipre: provar que um povo - que viveu em paz durante 400 anos, até que os genes daninhos dos nacionalismos grego e turco o fizeram perder a cabeça, juntamente com os medos instilados pelo ?dividir para reinar?, dos últimos dias do império britânico - pode viver junto de novo.
Ironicamente, os dois realizadores mais aptos para documentar estes momentos históricos encontravam-se a mais de 1000 Km de distância, em Roma.
A associação entre o realizador cipriota-turco Dervish Zaim e o produtor cipriota-grego Panicos Chrysanthou desafiou o pântano da política da ilha. Ambos foram expulsos das suas casas em 1974: Zaim, de Limassol, quando tinha 10 anos, e Crysanthou da sua aldeia perto de Nicósia. Encontraram-se há 7 anos, quando o primeiro filme de Zaim ?Somersault in a Coffin? recebeu um dos seus vários prémios em Thessalonika, e decidiram trabalhar juntos para fazerem o primeiro filme verdadeiramente cipriota.
A primeira ideia foi explorar a ?doença cipriota?, o desejo de cruzar a chamada linha verde, riscada num mapa por um oficial britânico em 1974, e tão hermeticamente fechada que apenas o pessoal da ONU e os pombos a atravessavam. Esta separação ?de metade de nós próprios?, como Chrysanthou diz, foi pela primeira vez tratada no filme de Christos Georgius, ? Under the Stars?, mas Zaim e Chrysanthou vão mais longe em ?Mud?, um  conto alegórico sobre um soldado que procura um padre, mostrado no Festival de Veneza do ano passado. Foi o primeiro filme cipriota ? turco da história.
Como qualquer cipriota-turco e cipriota-grego que queiram trabalhar juntos, Zaim e Chrysanthou têm que se encontrar em Londres ou Roma. E foi o que fizeram quando a fronteira abriu. ?Olhamos um para o outro nessa noite e dissemos ?Que estamos a fazer aqui?? recorda Zaim,  ?Devemos voltar para casa.?
Passaram meses separadamente filmando as histórias de alguns dos que mais sofreram em 1974. Queriam contar dois massacres, um de cada lado. Seria a primeira vez  que as duas comunidades eram confrontadas com os seus próprios crimes.
Zaim concentrou-se no bem conhecido massacre dos cipriotas-turcos de três aldeias da planície central de Chipre; Chrysanthou no menos conhecido dos cipriotas-gregos pelos seus vizinhos em Palykythio. ?Queria arrancar as suas histórias das mãos dos nacionalistas, daqueles que usam estas pessoas para a sua propaganda?, diz Zaim.  ?Sabemos que podemos viver juntos, mas temos de nos perguntar porque  fizemos isto uns aos outros. Se deixarmos as coisas por dizer, elas tornar-se-ão pesadelos e serão exploradas pelos nacionalistas?.
O plano era juntar as duas narrativas num documentário, ?Parallel Trips?. Mas quando a fronteira abriu a 23 de Abril, as coisas aparentemente mudaram.
? O nosso objectivo era procurar a resposta a ?porque fizemos isto??. A abertura da fronteira não mudou nada,? disse Zaim. ? Porque durante muito tempo, apesar de todos os disparates dos ?historiadores? nacionalistas, que dizem que sempre houve problemas, e as divisões criadas pelos britânicos, nós vivemos juntos e bem. Ponham dois cipriotas juntos e beberão, comerão e dançarão. O problema é quando trazem para a mesa os gregos e os turcos.?
?Parallel Trips? é, ao que parece, um filme duro. Foi mostrado pela primeira vez no Festival de Istambul, perante uma assistência chocada mas silenciosa, e posteriormente em Nicósia, na semana anterior ao referendo organizado pela ONU. Chegou a estar agendado para Thessalonika mas as autoridades retiraram-no para não arranjar problemas com Ancara.
O filme termina com um cipriota-turco e um cipriota-grego de mãos dadas levantadas em sinal de vitória. Pode ser que Chipre afinal tenha um ?happy ending?. Torcemos por isso, assim como para este filme ser um dia visível entre nós.

Nota: As declarações de Dervish Zaim e Panicos Chrysanthou foram retiradas de uma entrevista conjunta ao Guardian Weekly, de 13-19 de Maio de 2004


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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