Na passagem dos quinze anos sobre a sua morte, podemos dizer que Fernando Namora (1919-1989) foi um dos poucos escritores que, na unidade e diversidade da sua obra literária, mais contribuiu para a clara interpretação do que escreveu, tanto na ficção como na crónica, poesia ou nos ?cadernos de escritor?. Não há dúvida que no conjunto dos volumes desses ?cadernos?, de Um Sino na Montanha (1968) até Sentados na Relva (1986), mais de perto se pode entender a visão humaníssima das suas personagens, enredos, conflitos, gentes e terras. Por essas páginas, o autor de Casa da Malta discute consigo mesmo, confessa as suas ideias, retrata terras e lugares em andanças de viajeiro que ?anda e vê? com grande atenção o mundo em redor, define algumas das coordenadas de uma pessoal atitude de ser ?escritor-romancista?, desvenda as linhas essenciais da sua formação estética e ideológica. Em muitos dos textos, Namora passa em revista a nossa própria realidade humana, social e cultural, confronta-a com a de outros países, anotando em pormenor os aspectos que uma atenta e lúcida observação não deixa escapar: seja o quotidiano lisboeta, fixado em pormenores que sempre se ligam a um entendimento do mundo à sua volta, seja em redor das paisagens e gentes alentejanas (e muito belas se revelam as páginas de evocação de Castelo de Vide, Marvão, Portalegre ou Monsaraz), ou mesmo para falar dos problemas e questões levantadas sobre a literatura ou a crítica, enfim, a cultura no sentido mais universal, no diálogo vivo com intelectuais de outros quadrantes, o que se afirma nas páginas de Sentados na Relva é ainda (e sempre) uma visão realista de pretender dar do mundo e dos homens que se cruzam no seu caminho, no entusiasmo das ideias e das paixões mais sinceras, o retrato mais exacto e preciso nos contornos ou sentimentos que extravasam desse inalterável ?discurso? literário. E por aí Fernando Namora se declara sempre implacável, na releitura deste seu livro, pelos registos que faz ou na ideias que exprime, mesmo nos protestos que não pode calar: ?Ser escritor hoje, em Portugal, é exercer uma actividade que, apesar de bem castigada com tributos, deve ser das raras que o Estado desconhece em termos de encorajamento e previdência?. Mas não devemos deixar sem destaque muitas das ideias do que é essencial em Sentados na Relva, porque sobre as Reuniões Internacionais de Lahti, em Mukkula (Finlândia), o autor de O Rio Triste pôde assistir e participar em debates em redor de ser ?a literatura uma linguagem universal?. E se muitas dessas anotações que registou se prendem com a questão sempre tão debatida em diferentes perspectivas, a verdade é que deixa a impressão agradável de quase se ser, como seu leitor, um desses mesmos participantes, sentados na relva, ao sol e ao vento, ouvindo Guilevic, Bernard-Henri Lévy, Jean-Pierre Faye, Kobo Abe, Claude Roy, entre outros. E todo esse debate se desenrola entre a ?posição? ideológica do intelectual, a ?função? da literatura, o ?sentido? crítico da crítica, a ?verdade? e o ?rigor? da obra traduzida,isto é, a literatura como essencial comunicação entre os povos. Porém, entrecruzando esses registos com pertinentes observações críticas, Namora faz extrapolar algumas das considerações sobre a nossa realidade literária, com algum azedumes e amarga desilusão, e desabafa deste modo: ?Seríamos tentados a acrescentar Lisboa, mas Lisboa é outra coisa. Menos perdidamente civilizada e menos eufemística, Lisboa prefere a navalhada ao virar da esquina, prefere ser rasca.Tece conjuras na sombra, com qualquer poeta adunco e piloso a distribuir pelo gang lâminas de barba com que golpear as canelas da vítima, cospe grosso, verte bílis - mas tudo isso numa Lisboa rasteira. E à meia volta. Com a ambígua excepção dos velhacos importados, que, ao aclimatarem-se, refinam o veneno luso com um tempero cosomopolita?. Mas, nestes sentidos desabafos ou nos subentendidos que as suas observações deixam entender, Namora procura fazer o contraponto da realidade literária portuguesa com outras que a sua experiência como participante destes encontros internacionais não pode esconder. E foi realmente oportuno que o fizesse com tal lucidez e crispação, tenha posto o dedo na ferida por sarar desse velho conflito entre críticos e criadores. Na literatura e nas artes plásticas, no teatro e no cinema. Mas também sabemos que esse inalterável conflito não se passa só entre nós, porque noutros quadrantes se utilizam as mesmas armas, em idêntico cortejo de ódios, atrevimentos e protestos. E Fernando Namora logo observa, como se estivesse a nosso lado: ?Com efeito, a chamada indecência da vida literária não nos é exclusiva, não. A crestadora inveja (quem disse que a inveja é o mais dramático sinal da frustração?), o golpe baixo, a mesquinhez e a torpeza estão longe de ser estigmas nossos?. Sim, é antigo e sempre se retoma, tantas vezes de modo errado, esse conflito entre críticos e artistas, embora sejamos de opinião que as profundas razões se encontram noutro lado, talvez na falta de rigor e de verdade com que, tão leviana e constantemente, se erguem hossanas em louvor de certos escritores ou artistas e se proferem veementes protestos contra outros que, pela sua obra e pelo exemplo das posições assumidas, deviam merecer outra aceitação ou justificar uma rigorosa atitude crítica. Sabemos bem que existem diferentes padrões para encarar a arte (ou a criação literária) e que, enquadrando-se essa mesma arte e criação no seu tempo e espaço próprios, a crítica deverá assim necessariamente corresponder aos mesmos postulados estéticos e ideológicos. Ao rigor da criação artística, o sentido crítico não pode ser mais do que o processo imediato de estar à sua altura e por isso melhor a compreender, justificar e impor. Mas, no fim de contas, o ?jogo? em que o escritor ou o artista se empenha, se arrisca e compromete poucas vezes deve alguma coisa ao ?acto crítico?, seja ele teórico, formalista ou impressionista. Criticar é e sempre foi apostar, dizer o que vale e não vale, segundo as nossas opções e preferências. Criticar é ter consciência de exercer um direito que é de todos, é o modo de alargar esse diálogo e fazer com que o leitor ou até o espectador menos prevenido melhor entenda a obra que lê, escuta ou tem diante dos olhos. Assim, ao levantar estas questões e não escondendo as razões dos protestos que se alargam nas páginas dos seus?Cadernos de um Escritor?, Namora retoma, de forma coerente e renovada, esse mesmo itinerário de quem, como intelectual e nada indiferente aos conflitos do mundo, aborda problemas e esboça ideias para que melhor se compreenda esse triângulo nem sempre amoroso ou pacífico bem próprio da obra literária e artística: escritor / crítico / leitor ou artista / crítico / espectador. Por último, dizer que na releitura de Sentados na Relva perpassa ainda o mesmo sentido crítico e de responsabilidade de um escritor que, nas peregrinações de andar e ver outras terras e no convívio de outras gentes, não pode deixar de nos falar e dizer do seu pessoal modo de ler e compreender os homens e o mundo. E por estas páginas de confissão, denúncia, debate de ideias ou simples apontamentos de viagem se ergue ainda (e sempre) a voz do autor de O Trigo e o Joio que ao longo de cinquenta anos de criação literária consolidou uma obra que é das mais expressivas da literatura portuguesa do século vinte. Sem favor e quase sem necessidade de isso se repetir em relação a Fernando Namora.
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