DA MÍSTICA À TÉCNICAAs desigualdades de oportunidades educativas crónicas continuam a martirizar os sistemas educacionais. Como Blossfeld e Shavit mostraram no seu livro Persistent Inequalities: A Study of Educational Attainment in 13 Countries (Westview Press, 1993), a ligação entre classe social de origem e o sucesso escolar resistiu a todas as tentativas por parte dos políticos para a romper, ou mesmo para a enfraquecer. Mais, a nossa compreensão de como esta ligação se mantém está ainda longe de estar desenvolvida, sendo o melhor conselho que é possível dar aos políticos aquele que efectivamente se confina a propostas que não piorem as coisas. Contudo, isto não significa que não tenha havido mudanças na relação entre a classe social e a oportunidade educativa, e esta pretende ser, da minha parte, precisamente uma contribuição sobre daquilo que se pode aprender com um dos aspectos dessas transformações. Há aproximadamente 27 anos atrás (no âmbito de uma visita de investigação a Portugal), escrevi com um doutorando, John Trevitt-Smith, um artigo chamado ?Da Mística à Técnica: Completando a Revolução Burguesa na Educação?. O artigo acabou por nunca nos satisfazer, mas tive muitas oportunidades de retomar o seu argumento central. Este consistia em que jamais poderia haver igualdade efectiva em educação desde que os meios através dos quais o privilégio se estabelecia e se mantinha permanecessem não só intrinsecamente enviesados contra os menos integrados, como também totalmente obscuros para eles. A base deste argumento era a natureza do sistema escolar privado britânico, que assegurava que as meras classificações não eram suficientes para um estudante que não tinha estudado numa escola privada para conseguir um lugar nas universidades de Cambridge ou Oxford, por exemplo, ou para entrar em certas profissões de elite. As classificações oferecem claras e aparentemente objectivas ?regras do jogo?. Oferecem critérios transparentes. E, e isto é crucial, parecem indicar como é que todos podem competir com base nesses critérios. Não se trata de afirmar que os critérios eram ?justos?, ou que não eram muito mais compatíveis com o capital das classes altas, ou que as escolas destas classes não ofereciam melhores oportunidades para a obtenção dessas classificações. A questão é que, apesar de todas estas objecções, o sistema parecia tornar claro aquilo que havia que fazer para se ter sucesso no sistema educativo ? isto é, a questão poderia ser vista como uma questão ?técnica?. Contudo, os padrões de recrutamento para as universidades de elite não seguiam estritamente o sucesso na aquisição das classificações. O que se passava é que não eram os mais qualificados candidatos em termos das classificações que eram admitidos. Havia claramente um elemento do processo de selecção que não era transparente, ou penetrável pelos não iniciados, ou redutível a uma técnica, permanecia no âmbito da ?mística?. Todavia, com o passar dos anos esta situação tem-se alterado consideravelmente. Há agora maiores proporções de estudantes vindos das escolas não-privadas admitidos em Oxford e Cambridge (embora não cheguem a representar 50% de todos as admissões para o primeiro grau). Podemos dizer que o processo é agora significativamente mais ?técnico? do que ?místico?(1); a revolução burguesa encontra-se agora mais próximo de se realizar no campo da educação; para usar um discurso diferente, a modernidade está realizada. Mas terá sido mesmo isso o que aconteceu? Não poderá antes indicar que as barreiras à igualdade não são tão impenetráveis como se tinha suposto? A primeira coisa que se deve reconhecer é que a transformação ocorreu em grande parte dentro das classes médias; houve muito poucas, se é que houve, melhorias nas oportunidades das crianças das classes trabalhadoras, mais uma vez, apesar das bem, e frequentemente generosamente financiadas, intenções por parte dos políticos. Este facto dá-nos uma pista para a explicação da relação, especialmente tendo em conta que surgiu em grande parte durante um período em que a governação da educação mudou significativamente na maior parte dos países europeus, no sentido de tornar as escolas mais competitivas entre si, permitindo um maior grau de escolhas por parte dos pais no que diz respeito às escolas que os seus filhos e filhas devem frequentar. Em particular, aquilo que estas transformações associadas sugerem é que uma das razões para a continuação da desigualdade pode não ser tanto o insucesso das classes trabalhadoras mas o sucesso da classe média (ver Lauder et al., Trading in Futures: Why Markets in Education don?t Work; Open University Press, 1999). Esta explicação põe em causa alguns dos pressupostos que estavam na base do artigo original, particularmente o de que o que era preciso era a realização da mudança do estatuto herdado para o estatuto conseguido como base do valor social. A hipótese do sucesso da classe média não reflecte nenhuma mudança real neste sentido. Pelo contrário, sugere que se as ?regras do jogo? podem ser agora mais transparentes, elas não são mais igualitárias (a não ser que se aceite a perspectiva de Hayek de que o mercado é a instituição mais igualitária alguma vez existente, dado que é cega a tudo excepto à capacidade de pagar). Mais ainda, sugere que, para colocar a questão em termos mais abstractos, a parcial ?tecnicização? da ?mística? pode ser vista não tanto como uma mais nobre transparência das regras que permitiria que fossem minadas, mas como uma correcção dos insucessos do Mercado que, sob uma perspectiva neo-liberal, a ?mística? representava; e isto foi veiculado por políticas estatais muito diferentes daquelas que pareciam ser mais próprias de uma era de democracia social. Em vez de valorizar um enfraquecimento das regras do jogo, a mercadorização da educação revelou a sua verdadeira natureza ao mesmo tempo que as intensificou; longe de ser um passo no sentido de uma utopia baseada numa maior igualdade, a remoção das barreiras místicas representa mais um passo no sentido da utopia neo-liberal da mercadorização de tudo e de mais alguma coisa. 1) Um interessante paralelo do processo aqui descrito pode ser identificado na área da produção e do consumo de vinho, que se afastou da mística das ?castas? para a técnica dos derivados do Novo Mundo..
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