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1904-2004 centenário do nascimento de Armindo Rodrigues

Nascido em Lisboa (1904-1993), em cuja Universidade se formou em Medicina e exerceu a actividade clínica em largos anos de profissão, Armindo Rodrigues sempre esteve ligado aos meios políticos e culturais no combate activo ao fascismo salazarista e marcelista, tendo colaborado em diversos jornais e revistas literárias. Toda a sua obra poética, reunida em 18 vols. entre 1970-1986, revela sem dúvida na opinião crítica de Óscar Lopes, ?adentro do neo-realismo a voz de um actualizador de velhas tradições, sobretudo lírico-epigramáticas e sentenciárias?. Mas na visão humanista e dialéctica do mundo e da vida sempre se povoou numa plena lucidez na abordagem do seu próprio tempo e por isso, como observou Jacinto do Prado Coelho, cada um dos seus poemas ?requer uma leitura em função de todos os outros, pois nos surge como fugaz momento de uma dialéctica vital que transborda dos limites dos seus livros?, porque

Em cada pensamento estou inteiro.
Inteiro estou no mínimo protesto.
Inteiro estou no mínimo desânimo.

Ainda na lembrança de tantas vezes o ver subir e descer o Chiado, sempre com o estetóscópio debaixo do braço, disponível para servir de argumento em caso de qualquer ofensa ou insulto, como algumas vezes aconteceu depois de Abril ter chegado, nunca soube ao certo se o que mais me agrada e cativa na poesia de Armindo Rodrigues é a sua evidente força irónica ou a carga lírica e emocional, com evidentes ressaibos lorquianos vislumbrados no conjunto da sua poética, ou a simpatia pessoal que desde longe tive por quem de algum modo me ensinou a olhar o Mundo para lá das quatro paredes da própria solidão.
Guardo do poeta de Quadrante Solar a memória de saber, há muitos e largos anos, que pelos caminhos de descoberta de autores que foram da minha preferência, alguma coisa fiquei a dever a Armindo Rodrigues na leitura de livros por si fielmente traduzidos (Malraux, Fournier, Cholokov, entre outros), na paixão e entusiasmo dessas coisas, e assim aprendi a olhar e a admirar a "obra poética" de quem, por entre uma certa timidez e humildade, quase pedia licença para existir como poeta e nunca foi capaz, ao longo de quase noventa anos de vida, de abandonar a sua "barricada". E, por entre o convívio silencioso dos poemas, na frontalidade das suas posições ideológicas, das muitas "histórias" contadas em redor, refiz o "mito" de saber da sua existência nos encontros de acaso pelas ruas e livrarias lisboetas do Chiado - a Medicina sempre no caminho do Poeta, numa outra forma de ter voz e saber assim estar na vida e na poesia.
Pertencendo à corrente neo-realista desde o seu primeiro livro Voz Arremessada ao Caminho (1943), Armindo Rodrigues ergueu durante cinquenta anos uma Obra Poética que se impõe na fulgurância da sua expressividade e merece ser hoje relida sob um outro olhar, não só na perspectiva do seu alinhamento ideológico, que cedo se revelou coerente e firme nas linhas cruzadas de atitudes e posições próximas do neo-realismo dps anos 40 e 50, mas sobretudo pela importância literária de que toda ela se reveste. Ou no sentido dialéctico de sempre inquirir a realidade social e humana que o envolvia, sabermos ainda que na vida e na poesia Armindo Rodrigues ergueu a voz, falou alto e com justiça, participou corajosamente no acto de emendar o rumo da História que, como poucos de nós, viveu por dentro nas linhas cruzadas da própria vida e do tempo que lhe coube viver:

Toda a justiça é injusta, porque julga,
toda a ordem desordem, porque impõe,
toda a verdade errada, porque muda.

Ora, pela importância poética do seu "exemplo" e ainda na justeza das posições que soube assumir, na verticalidade de ter sido um grande e bom companheiro de muita gente, lembramos que Armindo Rodrigues foi um velho romeiro que agora saúdo na passagem do primeiro centenário do nascimento e na releitura de muitos dos seus poemas, neste modo de o reencontrar e ver que à volta não anda hoje muita gente ou os leitores não lhe fazem companhia.
Mas se a vida defendeu o Poeta e consente-nos, para nosso íntimo prazer, que escutemos a voz que ainda se ergue na defesa de valores que em consciência não traiu, e no sonho com que encheu as horas do seu fadário:

O sonho e a vigília andam a par.
A par o que se nega se promete.
Nada é nada, se apenas se afirmar.

Assim, só nos resta estender a mão em saudação fraterna e reler alguns dos poemas de Armindo Rodrigues que nos ficaram como memória de quem, na forma desejada de um sincero ou propositado "apagamento" pessoal, continua a estar no nosso caminho, na certeza de que o eterno mistério da poesia (e da vida) sempre se alcança neste mundo. E ainda em memória de Jacinto do Prado Coelho, que foi um excelente estudioso da nossa literatura, evocar estas palavras sobre o Poeta de Romanceiro:
"Voltada ideológica e emocionalmente para o futuro, trazendo até nós, viva, uma longa e variada tradição, a obra de Armindo Rodrigues parece querer significar que não é arrancando as raízes culturais dum povo que o seu futuro se constrói".
Por último, dizer que Armindo Rodrigues não merecia estar assim tão esquecido e talvez a celebração dos cem anos de nascimento sirva de algum modo para o trazer ao convívio dos leitores. Mas, ao abrir por acaso um dos volumes da Obra Poética, detenho-me sentidamente nesta Ode ao Tejo e digo com o Poeta, fitando o rio largo e longo que nos corre aos pés, por entre sinais de tristura e desencanto, mas de esperança redescoberta, na memória saudosa desses dias de Abril já quase perdidos de vista:

Náufrago entre o passado e o futuro,
um conjuro-o, o outro tento-o depreender.
Mas a ambos os vejo sem os ver.
O que passou faz-me a memória escuro.
O que virá como o hei-de merecer?
(...)
Mudos voltamos ao Rossio onde
há sempre um vão rumor de gente vã.
Torna-me a alegria brusca e sã.
Também depois da noite que nos esconde
Romperá uma lúcida manhã.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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