Mais de sete anos passados sobre a sua morte física, acaba de ser publicado In Memoriam de Vergílio Ferreira, organizado e prefaciado pela professora Maria Joaquina Nobre Júlio, que tem sido uma atenta estudiosa da obra vergiliana e após o seu doutoramento em Teologia Fundamental pela Universidade de Salamanca em 1995, publicou a tese O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus (Ed. Colibri, Lisboa-1997). Na introdução a este In Memoriam confessa que a sua tarefa foi árdua e difícil, porque nos seus contactos recebeu ?respostas negativas, algumas delas pessoal e directamente (as pessoas, cujos nomes não cito, lembrar--se-ão bem como me disseram peremptoriamente que não faziam nada...)?. Mas é sempre a mesma coisa: depois de morto, muitos dos que se serviram (literariamente falando, claro) do autor de Cartas a Sandra, logo se esquecem de tudo e passam adiante, estabelecem a sua ?loja? noutras paragens, para ver se o ?negócio? (literário) pode continuar a render. Que lhes preste!
Mas pela dimensão deste volume e tendo em conta a importância e qualidade dos textos importantes de quem respondeu ao apelo de Maria Joaquina Nobre Júlio, sabemos agora como valeu a pena ter-se empenhado neste trabalho no sentido de claramente, como afirma, poder cumprir um acto de justiça por pensar que algum dos vergilianos mais autorizados devia tomar a iniciativa de promover em sua homenagem a publicação de um In Memoriam. E assim foi cumprido, porque os textos que se incluem nesta edição, mesmo que se repitam os nomes de alguns dos estudiosos mais atentos da obra vergiliana, contribuem de uma forma evidente para a melhor compreensão de vários aspectos da sua criação literária, ensaística e diarística ou revelam textos evocativos por parte de quem foi colega de liceu ou de convívio pessoal do autor de Aparição. E, sem referir todos os trabalhos reunidos neste volume, é justo realçar os ensaios de Maria José Cantista, Nelly Novaes Coelho, Maria Lúcia Dal Farra, Helder Godinho, Maria Joaquina Nobre Júlio, Gavillanes Laso, Isabel Cristina Rodrigues, Eduardo Lourenço ou Luís Mourão, os depoimentos de Beatriz Serpa Branco, Mariberta Carvalhal, Robert Bréchon, A. Campos Matos ou ainda os poemas de Maria Aliete Galhoz, Eduíno de Jesus e Nuno Júdice. Pela minha parte, no ensaio que apresento nesta edição, sob o título ?Memória de Vergílio Ferreira (de Aparição a Cartas a Sandra)?, tracei uma evocação pessoal e não deixei de estabelecer as coordenadas da sua obra literária, para relembrar sobretudo como a partir de 1960 se iniciou e consolidou entre nós uma profunda amizade, que se fez de muitas cartas, conversas, cumplicidades e histórias ainda por contar. Mas por saber como de longe permanecerá a memória da paisagem serrana rude e agreste da sua Beira Alta ou do manto diáfano de neve em dias de invernia e a presença das serras da Nave e da Estrela, ou os lugares de Melo, Nabais, Folgosinho, e Gouveia, ou a Évora inesquecível e Sintra e Fontanelas de tantos encontros que de forma solene percorrem sempre as páginas mais comovidas da sua ficção ou diário. Na lembrança de que em todas as ocasiões Vergílio Ferreira proclamou que não tinha biografia, ou que a sua biografia, ainda em memória de Eça,era como a república de Andorra, mas sempre guardava saudades da infância,talvez por esta ter sido triste e cheia de sombras de que muito falaria pelas páginas dos volumes de Conta-Corrente, e sobretudo nos seus romances, porque a cada passo a memória se ergue como absoluta celebração de todo esse passado e os clamores mais profundos das origens ou as vozes de silêncio se levantaram sempre como protesto ou farol de uma caminhada que foi longa e teve grandes sobressaltos. Mas sem deixar todavia de salientar que toda a criação literária de Vergílio Ferreira, mesmo os livros menos conhecidos da fase neo-realista (Vagão "J", Mudança e Manhã Submersa), não deixa de incidir nas razões profundas da vida e nos mistérios da morte, da grandeza e inevitabilidade física dos homens, no alarme e surpresa de o mundo se entender, no bem e no mal, pelos sonhos em que vivemos, espelhando nos outros a voz profunda e única que por dentro soa do nosso próprio "mundo original". E também afirmar que a voz pessoalíssima e sempre inconfundível do autor de Aparição invoca os sinais visíveis da obsediante procura de uma clara explicação ou justificação para a vida, e não a encontra face à inverosimilhança da morte, e sempre de modo coerente a tentou desvendar pelos caminhos da vida e da arte. Por isso, nesta evocação da sua memória e na justa dimensão como se abordam alguns vectores essenciais da obra de Vergílio Ferreira, creio que este In Memoriam (e valeu realmente a pena, repito, todo o esforço intelectual da parte de Maria Joaquina Nobre Júlio) uma vez mais coloca em evidência a complexidade dos valores da obra vergiliana e os variados mitos que defendeu e se esforçou por esclarecer ao longo dos seus livros, mas entre a vida e a morte permanece ainda a imagem de um escritor que não tinha nada de complicado ou de distante nas suas relações de todas as horas. E, como declarou na última e inacabada carta a Sandra, pudesse também eu na minha memória recuperar ao menos nesta hora o sentido das muitas conversas havidas com o autor de Em Nome da Terra pelo desfiar de tantos anos.
IN MEMORIAM DE VERGÍLIO FERREIRA Organização e introdução de Maria Joaquina Nobre Júlio Bertrand Editora / Lisboa, 2003.
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