Quer se queira quer não, Leni Riefenstahl também foi nossa contemporânea. Por acasos da sorte, morreu com 101 anos, alguns dias depois do final dos Campeonatos do Mundo de Atletismo. Seria pois difícil não recordar aquela que realmente inventou a filmagem do desporto. Em ?Olympia? - filme documentário sobre os Jogos Olímpicos de Berlim 1936 -, Riefenstahl lançou as bases da retórica das imagens do atletismo?e não só. Exaltação dos corpos, culto da ?perfomance?, gramática imparável dos planos tanto nas corridas como nos concursos - como não lembrar aquelas inimagináveis (para 1936) imagens do salto à vara ? dramaturgia do ?suspense?, monumentalização do acontecimento e mesmo o plano de corte na tribuna, do acontecimento, o chanceler Adolfo Hitler, assistindo impotente à vitória de um atleta negro, Jess Owens, face a Lutz Long, o bom ariano de serviço. De tudo isto, herdamos hoje, técnicos, comentadores, publicitários e público em geral, o mesmo fascínio por estas imagens de corpos em movimento. Deste passado embaraçoso, que pretendemos esquecer, preferimos considerar ?Olympia? como peça de Museu, historicamente crucial e ideologicamente nauseabundo, ainda que o filme de Riefensthlal paire - qual espectro insistente ? em todas as imagens de atletismo, de desporto, passadas, presentes e futuras Tornando-se em 1933 uma das favoritas do regime nazi, graças à sua amizade com Hitler, Riefenstahl nunca foi membro do partido, mas as recentes biografias de Rainer Rother (2000) e Jürgen Trimborn (2002) provaram que os seus laços com o Führer eram mais estreitos do que ela sempre tentou dizer, apesar da admiração pessoal que nunca desmentiu. Era uma das raras ? com o arquitecto Albert Speer, o fotógrafo Heinrich Hoffman e Winifred Wagner ? a depender unicamente dele sem passar por Goebbels. No seu ensaio, intitulado na tradução francesa ?Fascination du Fascisme? (1975), Susan Sontag definiu uma estética do nazismo através da obra de Riefenstahl. Referia que apareciam temas e estruturas estéticas seus noutros cinemas, citando Disney, Busby Berkeley e Kubrick. Depois os argumentos foram usados e abusados até ao infinito. O estilo de Riefenstahl dá para tudo. Toda a gente está pronta a descobrir ideologia na forma. Se ela filma uma montanha é a aspiração mística, ritual heróico, etc; se filma um Negro é o apelo à pureza da raça. Para Riefenstahl, que, como todos os cineastas alemães do mudo, montava ela própria os seus filmes, a montagem consistia em ?eliminar? ? note-se, por exemplo, que foram rodados para ?Olympia? 400000 metros de película para 6200 montados. Está então feita a prova do seu conluio com o Holocausto. Gostaríamos que a morte de Leni Riefenstahl nos libertasse deste peso histórico, pelo menos incómodo, quando somos forçados a reconhecer o seu talento de realizadora e montadora. Ficam ?Olympia? e não só, que persistem, apesar das nossas denegações, nossos contemporâneos. Esta é uma das lições destes Campeonatos do Mundo de Atletismo.
|