A ADOPÇÃO DE ESTEREÓTIPOS SEXUAIS TEM SIDO DOMINANTE NAS ANÁLISES DA VIOLÊNCIA POLÍTICA E DOS CONFLITOS ARMADOS. POR UM LADO, OMITE-SE, EM REGRA, A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS, GUERRILHAS, FORÇAS PARAMILITARES OU NAS OPERAÇÕES DE PAZ (Enloe, 1993). POR OUTRO LADO, TEM-SE RECORRIDO À ESTEREOTIPIFICAÇÃO, AO ESSENCIALISMO, À UNIVERSALIZAÇÃO OU À DIVISÃO SIMPLISTA DE PAPÉIS, ROTULANDO OS HOMENS COMO PERPETRADORES DA VIOLÊNCIA E ACTORES ACTIVOS DURANTE OS CONFLITOS (ASSOCIADOS À AGRESSIVIDADE) E AS MULHERES COMO VÍTIMAS E DEFENSORAS DA PAZ (ASSOCIADAS À PASSIVIDADE) (Boutros-Ghali, 1992; United Nations, 1996; Yuval-Davis, 1997; Lentin, 1997; Kelly, 2000; Jacobs et al., 2000).
A importância da participação concreta das mulheres em iniciativas de redução da violência e de reconstrução pós-bélica tem sido justificada de diversas formas, designadamente por um suposto pacifismo 'natural' inerente ao feminino, que por vezes se torna redutor por reproduzir estereótipos que, não sendo ultrapassados, conduzem a uma maior marginalização das mulheres em todo o processo. Assim, a "Campanha das Mulheres na Construção da Paz", composta por organizações de mulheres de todo o mundo, defende que "a percepção das mulheres como vítimas durante os conflitos violentos obscurece os seus papéis enquanto actores nos processos de reconstrução e de construção da paz [...] As mulheres são sistematicamente excluídas dos processos de tomada de decisão nas negociações de paz e nos processos de construção de paz, apesar do seu papel crucial de mediação e reconciliação ao nível local" . O processo que conduz à paz segue, de um modo geral, dois caminhos paralelos: as negociações formais de paz, visíveis e públicas, encabeçadas por líderes políticos que identificam as prioridades para a actividade política do pós-guerra e que geralmente resultam num acordo de paz; e um segundo caminho, frequentemente invisível e anónimo, que consiste num conjunto alargado de actividades informais promovidas por grupos heterogéneos de organizações voluntárias locais, que tentam chamar a atenção para determinadas preocupações durante o período de transição para a paz. O processo formal tende a ser altamente androcêntrico e caracteriza-se por uma sub-representação das mulheres. A vertente informal, frequentemente relegada para segundo plano, tem, em regra, como principais actores organizações locais de mulheres, que desempenham papéis cruciais na construção de uma nova cultura de paz e na definição de alternativas a conflitos violentos, através da organização de programas de educação para a paz, de reconciliação e de actividades de reconstrução social. Muitas mulheres vêem estas organizações como um espaço único de mobilização, de criação de laços de solidariedade e de reconstrução dos quotidianos. Neste contexto, e muitas vezes motivados por esta abordagem tradicionalista, alguns programas das Nações Unidas e de governos referem-se à reconstrução pós-bélica de instituições e estruturas, mas negligenciam as necessidades psicossociais, relacionais e espirituais das comunidades. As organizações locais de mulheres têm lidado com estas necessidades, definindo a construção da paz como uma prática que pressupõe alternativas à violência, o reconhecimento e respeito pelos direitos humanos, a promoção da tolerância intercultural e a capacitação nas esferas económica, social, cultural e política. A Conferência Internacional sobre "Mulheres, conflitos violentos e construção da paz: perspectivas globais" (International Alert, Londres, Maio 1999: 6) sublinhou nas suas conclusões que "as mulheres não são vítimas passivas. Desempenham um papel muito significativo na construção da paz e na reconciliação aos níveis local e da comunidade em regiões afectadas pelo conflito. Têm um papel activo na desmobilização, na reconciliação entre comunidades, na defesa e promoção de direitos humanos, legislação, democratização, desenvolvimento, combate à pobreza, iliteracia e programas de capacitação económica". É necessário ir além da imagem das mulheres enquanto vítimas da guerra e identificar as diversas iniciativas de construção da paz promovidas pelos grupos locais de mulheres. A inclusão das mulheres no contexto alargado da construção da paz deveria ser um objectivo de todas as iniciativas de construção da paz, ou seja, todos os processos de reconstrução e de construção da paz deviam tentar identificar as preocupações e competências específicas das mulheres, fazer uma abordagem da construção da paz a partir das perspectivas das mulheres, e acolher os seus discursos pluralistas e métodos diversos, uma vez que a construção da paz tem uma especificidade cultural e local, tal como os conflitos armados que a tornam necessária. Por não se tratar de uma fórmula ou definição global, as iniciativas locais de redução da violência, reconstrução ou reabilitação pós-conflito, que incluem as abordagens tradicionais de construção da paz ou iniciativas alternativas, devem ser tidas em consideração, contextualizadas e desenvolvidas. Por isto mesmo, e considerando as mulheres participantes essenciais na construção da paz, a abordagem a adoptar deverá ter em conta elementos como os significados que mulheres de diferentes culturas atribuem à construção da paz ou o modo como a etnia, a classe, a religião podem moldar os discursos sobre a construção da paz.
Bibliografia
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BOUTROS-GHALI, Boutros (1992), An Agenda for Peace. Nova Iorque: United Nations Publications.
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ENLOE, Cynthia (1993), The Morning After: Sexual Poltics at the End of the Cold War, Berkeley: University of California Press.
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JACOBS, Susie et al. (2000), States of Conflict: Gender, Violence and Resistance. Londres/Nova Iorque: Zed Books.
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KELLY, Liz (2000), "Wars against Women: Sexual Violence, Sexual Politics and the Militarised State" in Susie Jacobs et al. (2000), States of Conflict: Gender, Violence and Resistance. Londres/Nova Iorque: Zed Books.
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LENTIN, Ronit (org.) (1997), Gender and Catastrophe. Londres/Nova Iorque: Zed Books.
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (1996), An inventory of post-conflict peace-building activities. Nova Iorque: ONU.
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