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Independentes do/da "subsídio-dependência"

NAS POLÍTICAS SOCIAIS O DEBATE SOBRE A QUESTÃO DA DEPENDÊNCIA PODE DIZER-SE QUE TRANSITOU DE UM CONCEITO DO FORO SANITÁRIO PARA O DOMÍNIO DAS CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA AUTONOMIA OUTORGADA AOS CIDADÃOS.

Apesar de se tratar de interpelação que passou a atravessar todas as políticas sociais, têm sido particularmente visadas as políticas e medidas orientadas para a população em situação de pobreza e exclusão social e, dentro destas, particular acuidade têm tomado as medidas que dizem vincular-se a propósitos de inserção.  Apesar de não se tratar das intervenções mais significativas do ponto de vista do peso orçamental (elas são modestas em custos e em população abrangida), trata-se, todavia, de dispositivos muito observados. Observados porquê? Entre outras razões, por serem vistas como medidas potencialmente protectoras (quase encobridoras) de processos e situações atípicas. Assim, se designam comumente tais situações e processos pese embora a regularidade da sua ocorrência, tanto no seu crescimento numérico quanto na sua progressiva maior severidade.
A ideia de que alguns dos que ?beneficiaram? ou estão a ?beneficiar?(1) das políticas públicas não são aqueles que mais delas carecem, tem justificado alguma enunciação (mas reduzido debate) sobre a questão da dependência. Assim, podemos ser confrontados com sentidos distintos ou pelo menos com um duplo sentido, como por exemplo: i) ser dependente = estar abrangido por... e, ii) ser dependente = ter-se habituado a...
No campo das recentemente chamadas políticas de inserção, como é sabido, a inserção laboral é uma das vertentes trabalhadas e que suscita particular atenção, dado ser esperadamente das intervenções mais autonomizadoras. Assim sendo, vem-se mantendo interesse em conhecer e intervir sobre os obstáculos a tal inserção e, apesar de se saber que podem ser de natureza variada, há analistas contemporâneos que, de entre as razões económicas, políticas e culturais/psicológicas, valorizam predominantemente esta última dimensão. É o caso de L. Mead (2) quando identifica como particularmente resistentes as ?barreiras internas?, isto é, as que existem (e subsistem) na cabeça e nas atitudes da população pobre. Reconhece, assim, que  a mais convincente interpretação do não-trabalho e dependência do bem-estar deriva do tipo de psicologia ou mentalidade adoptada pela ?cultura da pobreza?. No centro dessa cultura está uma ?...atitude de fatalismo e derrotismo ou, pelo menos, uma crença na sua própria ?ineficácia`?(3), e daí à dependência é um passo. ?Na perspectiva neoconservadora de Mead, então, a ?cultura da pobreza?, encoraja o ?não-trabalho voluntário? e a ?quebra da ética do trabalho??.(Ibid, 134). De eventual factor associado com a trama da pobreza, a dependência oferece-se a ser vista como escolha dos que se ?habituaram? a ...
Em sentido idêntico caminham as ideias e os discursos que se referem a um reconfigurado campo: o da ?subsídio-dependência?. São vários os pressupostos em que assenta, apesar de ser bem mais modesto o real objectivo visado. Ainda no campo da Pobreza e Exclusão Social,  pressupostamente, a ?subsídio-dependência? indica a apropriação indevida ou um tipo excessivo de apropriação (excessiva em tempo e/ou quantidade) de direitos, traduzidos em recursos pecuniários. A par deste, outro pressuposto se perfila: o do abuso (deliberado) do erário colectivo. É curioso de verificar como algumas das apropriações verificadas como indevidas, são maior factor de escandalização do que as (até hoje incomensuráveis) fugas ao fisco. São conhecidos (mas escassamente reconhecidos) para Portugal os contornos das prestações no campo da Pobreza (esta mesma marcada por tardia ?descoberta?). Tais prestações são de fraca generosidade, de incerta regularidade e de recorrente atribuição não atempada (isto é, muito depois da emergência e desenvolvimento da necessidade/?eventualidade?). Apesar de tudo isto não nos parece defensável que já que é de padrão insuficiente, então não vale a pena cuidar da sua equitativa distribuição.
Dito isto, de que é que se fala quando se fala de subsídio-dependência por relação a situações tão precariamente atendidas, de medidas de pendor irregular e temporalmente diferidas? Sabe-se que frequentemente só chegam aos pobres de entre os mais pobres. Mais do que tudo parece estar em causa (e em curso) a regulamentação moralizadora da distribuição, em contexto da desregulamentação economicamente activadora (?). Não é sem razão que tantos analistas actuais nos lembram que, hoje, mais do que a quantidade e suficiência dos bens e serviços administrados, se enunciam (pre)juízos sobre o ?merecimento? da atenção pública.
A orientação que em anos recentes se desenvolveu no sentido da revisão do Estado de Bem-Estar, acentuou o interesse pela avaliação da(s) dependência(s) que pressupostamente terá criado.  Em países de sistemas incompletos de protecção social (este começa a ser um conceito censurado) parece fazer mais sentido pensar e aprender com a independência dos cidadãos pobres face à ?subsídio-dependência?. Perguntemo-nos: a existência de muitos desses cidadãos e cidadãs fica a dever-se a que estratégias de  sobrevivência? Como é que essa sobrevivência tem resistido sem apoios ou com apoios tão minguados (a agora sob o regime de suspeição)?  Este um estudo e uma aprendizagem que só timidamente se tem feito, não vá que os caminhos encontrados  pelos pobres sigam trilhos que não sancionem/alimentem a estrita racionalidade economico-consumista.
Em causa parece estar, sobretudo, a obsessiva necessidade de emagrecer o Estado, ainda que deficitariamente defendida, isto é, por razões de um qualquer padrão exógeno de mensuração de défice orçamental. Nesta visão, para o Estado deixam-se (apenas) os que inevitavelmente dele não podem totalmente prescindir (mesmo que esses não sejam a totalidade dos que nele deveriam ser garantidos). O Estado voltado (só) para estes, porquê? Por razões, diz-se hoje, incontornáveis, mas quem sabe se pelo facto de se tratar de cidadãos que já mostraram sobreviver com tão pouco, às vezes mesmo, na ausência dos apoios públicos. Persistentemente têm sido parte dos independentes da ?subsídio-dependência?.

1. Registe-se que apesar da designação, medidas há que dificilmente se têm saldado em efectivas benfeitorias.
2. Mead, Lawrence (1999) From Welfare to Work: Lessons from America, Londres, IEA, Health and Welfare Unit
3. Roche, Maurice (1992) Rethinking Citizenship, Cambridge, Polity, 132-133.

  
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Fernanda Rodrigues
Univ. do Porto, FPCE
Fernanda Rodrigues
Univ. do Porto, FPCE

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