Era uma vez um montanhês que tinha um bigode extremamente grande. O bigode era todo o seu orgulho. Assentava-lhe esplendidamente. O montanhês estava apaixonado por certa jovem que vivia numa mansão das redondezas. Encontrara pretexto para lá entrar, caçando 1ebres que depois levava aos senhores da casa. Contudo, nem sempre via a sua apaixonada, que passava muito tempo a ler na biblioteca ou a fazer incursões à despensa. Muitas vezes, porém, as lebres não caíam nas boas graças da família e seus convidados, e a mãe da jovem costumava dizer, olhando para a filha fixamente: "Mais lebres!» A jovem, então, corava e baixava a cabeça. O montanhês era tímido. De qualquer maneira, a diferença de posição social não lhe permitia aproximar-se da sua amada. Mas acreditou a certa altura que o seu sonho ia realizar-se. Tinha acabado de caçar uma lebre e ia levá-la à mansão. Em vez de se dirigir pelas traseiras, foi pelos jardins. Viu a jovem sentada na estufa. Sozinha. As mãos pousadas sobre um livro aberto. Sonhava. Uma madeixa de cabelo caia-lhe para a fronte, a boca levemente aberta e os seios trementes pela respiração ofegante. 0 montanhês ficou extasiado com tal visão. Estava decidido a largar a lebre, saltar a sebe que os separava e cair de joelhos confessando todo o seu amor. Nesse momento exacto, porém, a senhora da casa saiu dos lados da cozinha, seguida por uma criada com um cesto de roupa. A senhora gostava de vigiar todos os trabalhos de casa e, quando lhe faziam o reparo que se cansava sem necessidade, respondia se«pre: «Se o lago não estiver limpo, ench---se de rãs ? sem mim a vida desta casa ficava entregu» aos bichos.» 0lhou em redor e notou que a corda da roupa não estava lá; tinham-na deixado na casa das arrumações. «V»m cá e espera um momento», disse ela ao montanhês, e atou uma das extremidades do bigode de1e a uma árvore e a outra a uma segunda árvore. «Tenho de secar a roupa», explicou. «0 céu está a ficar carregado de nuvens e pode»começar a chover. 0 meu marido depois te pagará.» Ordenou à criada que estendesse a roupa no bigode esticado do montanhês. A criada obedeceu, indo-se depois embora com o cesto vazio. 0 montanhês ficou sozinho. 0 bigode atado a duas árvores. Segurava a lebre ainda numa das mãos. Como poderia aproximar-se da sua amada em tais circunstâncias? Continuava sentada na estufa, o olhar perdido na distância, como se tivesse encontrado algo de indefenível entre o céu e a terra, imperceptível para as outras pessoas, mas sensível ao coração de uma jovem mulher. 0 montanhês ficou mais quieto que uma estátua. Daria de boa vontade um puxão ao bigode para se libertar, mas tinha até medo de respirar, não fosse a sua amada descobri-lo. A sua vergonha não derivava tanto de ter sido obrigado a executar uma tarefa pouco masculina. Aceitá-la-ia d... boa vontade por um só olhar de sua amada. Mas a roupa? era dela! Estava tão atrapalhado, com tal receio de que e1a olhasse, tão preocupado em não fazer barulho que se manteve em bicos dos pés. Cada vez se sentia mais corado e quente, até que por fim lágrimas começaram a rolar pela sua face escaldante. A jovem fechou o livro com lentidão. Ergueu-se. Caminhou suavemente pelo relvado até ao lago e começou a dar de comer aos cisnes. Os olhos eram os mesmos, remotos e sonhadores. Ter-se-ia apercebido do destino do infeliz montanhês? Não o sabemos. Quem é capaz de ler no coração de uma mulher? E o montanhês? Foi visto dias mais tarde a vender lebres no mercado. Tinha cortado o bigode rente. Não Ihe ficava bem. As raparigas faziam troça dele.
Mrozeck; O elefante, editorial estampa.
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