DESDE o seu primeiro livro publicado em 1966 - Por um Tempo Europeu num Espaço Português -, o ensaísmo de Nuno Teixeira Neves nunca deixou de reflectir uma visão singular do mundo que o rodeia, na preocupação constante de travar um diálogo sobre ideias coerentes num "tempo europeu", povoando os textos de intervenção e denúncia crítica com referências de evidente sentido autobiográfico ou marcados por um carácter de nítida abordagem literária, com destaque para a obra de Kafka ou de Guimarães Rosa. Mas o tipo de ensaio problemático do autor de O Disfarce de Orfeu (1991), que neste último livro incide com clareza na confissão das várias prisões sofridas nos anos salazaristas de 40 e 50, nunca deixa de abordar os problemas estéticos, literários e ideológicos do nosso tempo numa perspectiva humanista e de clara intenção filosófica. A sua visão lúcida e penetrante fica clara no espírito dos leitores, porque a grande qualidade do ensaísmo de Nuno Teixeira Neves reside na sincera emotividade que transmite através da sua escrita enredada e sinuosa, dominada por um estilo forte e insinuante, por vezes mesmo labiríntico, onde o tom essencial se manifesta incómodo, mas sem deixar de interrogar e discutir o essencial das questões. Por isso, numa atitude intelectual sem exageros mundanos, constitui nestes últimos anos uma das mais profundas e atentas reflexões do ensaísmo português, a par de Óscar Lopes, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira, Joel Serrão ou Eduardo Prado Coelho. De facto, a intervenção jornalística e literária de Nuno Teixeira Neves não se afasta de uma intervenção muito pessoal e do vivo interesse pelos problemas da arte e da literatura (de passagem, lembremos como foi relevante a sua acção em muitos anos como responsável pelo Suplemento Literário do Jornal de Notícias) e sem colidir com a intenção primordial de "ser cidadão" interveniente no processo de entendimento cultural ou de modificação social da sociedade em que vive. Ora, em O Falso Testemunho o que sobressai é o tom singular de aos oitenta anos de vida saber recuar no tempo e relembrar, de uma forma pungente e comovida, o que foram as experiências pessoais nas prisões fascistas nos anos mais duros e violentos da ditadura salazarista. Mas, na forma de autognose que é este exorcismo ensaístico que se desdobra em dois planos que é o do pensado e do vivido, do sofrido e do imaginado, na pormenorizada referência aos ?crimes? de que era acusado (e uma dessas prisões foi ?justificada?, imagine-se, por um abaixo-assinado em nome do Movimento Português para a Paz) e à natureza e condições da prisão nos calabouços da PIDE no Porto, Nuno Teixeira Neves conduz o seu leitor aos ?infernos? pidescos, aos processos de interrogatório, às formas de tortura, mas sem exibir ou pôr em relevo o acto de coragem que era o de resistir e não falar, ou silenciar outros amigos e companheiros, mesmo sem medo de enfrentar todas as consequências dessa atitude. E, ainda na memória dos tempos de Coimbra e dos trabalhos e dias como jornalista vividos no Porto em se radicou, Nuno Teixeira Neves não abandona, em simples pormenores ou mesmo nas entrelinhas, esse sentido de memória e de biografia mais perceptível para quem conhece alguns aspectos da sua aventura intelectual, embora o não seja tão claramente legível e entendível para o leitor que porventura não saiba descodificar o carácter visceral e literário deste livro. Mas na atitude de sempre ter sabido tudo o que "arriscou" e o que "aceitou", no modo pessoal de tantas vezes ter dito sim e não, Nuno Teixeira Neves pretende ainda afirmar que o necessário ajuste de contas que faz na hora de arrumar as gavetas e estabelecer o balanço do que vale a pena recuperar, é também (e sobretudo) feito com as engrenagens sociais e culturais antes e depois de Abril, no propósito coerente de "desarmar os factores da luta" que no seu caso foi quase diária ao longo de tantos anos, mas sempre na intenção de decifrar o sentido da própria comunidade, ou seja, a mesma comunidade que, desde a infância relembrada pelas terras do nordeste transmontano, na memória do Pai e da Mãe (a quem este livro é dedicado), nos lugares ainda de descoberta e de fascínio, ou mesmo de desilusão e amargas lutas, não deixar de erguer nas suas páginas uma permanente e corajosa forma de participação cultural. Por isso, ao reviver o passado e percorrer os tempos de memória que talvez não fossem muito de recordar nos seus oitenta anos de vida, Nuno Teixeira Neves dá-nos um admirável testemunho como exorcismo para afastar do seu caminho os fantasmas do fascismo salazarista que, na distância dos anos já passado, quase nos parece ridículo e insignificante nos motivos e razões da própria acção policial e perseguidora a todos os níveis. Mas o que se revela expressivamente rico na leitura deste Falso Testemunho é ainda a exemplar "lição" do jornalista que pôde fazer a sua via-sacra por entre muitas canseiras e sacrifícios e na intenção primordial de denunciar a verdadeira actuação da PIDE ou a privação de liberdade, e estabelecer o confronto entre uma visão das variadas formas de pressão e debilidade psicológica (que levou alguns ao suicídio) e a verdadeira razão de ser de tantos combates num tempo de trevas e de grande obscurantismo cultural e político. Mas a verdade é que Nuno Teixeira Neves sabe uma vez mais decifrar todos os meridianos da sua própria navegação e falar quase de forma despudorada e comovida de uma experiência que foi difícil suportar e viver. Vale a pena, pois ler este lúcido e ousado depoimento pessoal (e nunca um ?falso testemunho?) de quem é, como Eduardo Prado Coelho declarou, "um dos mais lúcidos, sugestivos e produtivos ensaístas portugueses".
Nuno Teixeira Neves O FALSO TESTEMUNHO Ed. Campo das Letras / Porto, 2003.
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