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Ensino superior deve abrir-se a novos públicos

Doutorada em Ciências da Educação, na área da Sociologia da Educação, pela Universidade de Coimbra (UC), Ana Maria Seixas é actualmente professora auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da UC, onde exerce funções docentes e de investigação desde 1987. É também membro do Centro de Psicopedagogia daquela faculdade e investigadora associada do Centro de Estudos Sociais da UC. Tem publicado trabalhos no domínio da Sociologia da Educação, Políticas Educativas e Ensino Superior, acabando de publicar o livro "Políticas Educativas e Ensino Superior em Portugal".
Nesta entrevista falamos com a autora sobre a sua mais recente obra e, entre outros temas, sobre os desafios que se colocam no futuro mais próximo ao ensino superior português, no qual o actual processo de Bolonha parece ter um peso significativo.

Acaba de lançar o livro "Políticas Educativas e Ensino Superior em Portugal", onde analisa as transformações no ensino superior português nas últimas duas décadas e o papel do Estado e do mercado neste sector. O que a levou a avançar para este trabalho?

Um dos principais motivos que me levou a avançar para este trabalho foi o facto de, até à altura, e de certa forma ainda hoje, existir um défice de estudos sobre o ensino superior em Portugal. Apesar de não esquecer aqueles que, fruto da sua experiência, apresentam contributos extremamente úteis para sua a análise, considero, ainda assim, não existirem estudos que nos permitam conhecer com mais profundidade a realidade portuguesa neste domínio; ou se existem têm pouca divulgação.

Ao que sei o seu interesse pelo ensino superior não aparece apenas com este trabalho...

O meu interesse pelas questões do ensino superior inicia-se com a minha tese de mestrado, apresentada em 1992, intitulada "Escolas modelo ou escolas refúgio?", na qual procurei analisar o ensino politécnico, nomeadamente o seu enquadramento legal - que reflecte de, certo modo, a ambiguidade que rodeou o seu aparecimento -, e a inexistência de um modelo de desenvolvimento estratégico a longo prazo, que, em maior ou menor medida, tem influência no próprio percurso dos estudantes. Regra geral, a maioria optava pelo politécnico como segunda escolha e pretendia, na altura, prosseguir os estudos na universidade.

Apesar de esse estudo ter já uma década, considera que esse sentimento de preconceito relativamente ao ensino politécnico ainda se mantém?

Sim, e a deriva académica que caracteriza este sub-sector contribui muito para essa situação. Ainda hoje há uma indefinição relativamente ao seu papel e uma dificuldade de afirmar a sua especificidade. Porém, penso que essa especificidade deverá ser salvaguardada porque é necessária e existe público para ela.

O livro que acaba de publicar, que resume a sua tese de doutoramento, surge no seguimento desse anterior trabalho? Qual é o seu objecto?

Sim. Nele abordo as transformações ocorridas no ensino superior durante as décadas de 80 e 90 e o papel do Estado no sector, tendo em conta as tendências emergentes de regulação do ensino superior, influenciadas, em grande medida, por políticas e recomendações de organismos internacionais, como o Banco Mundial, a OCDE ou a Unesco. Estas transformações no ensino superior português inserem-se nessas tendências internacionais, preconizando o aumento da autonomia institucional, associada a novas formas de avaliação e de financiamento.
É uma análise de um novo modelo de ensino superior, ao qual me refiro como "modelo standartizado de mercado", impulsionado pelo processo de globalização neoliberal, e das transformações que ele originou tendo em conta a oferta e os três mecanismos políticos de regulação que lhe aparecem associados: a autonomia, a avaliação e o financiamento.
Enfim, é um trabalho que tenta contribuir com uma síntese geral dos discursos legislativos e políticos que perpassam pelas transformações da relação do Estado com o ensino superior, onde fica patente a falta de coerência que o caracteriza devido, nomeadamente, à inexistência de uma estratégia a médio e longo prazo.

Depois de um período de expansão nos anos noventa, o ensino superior parece estar a assistir a uma retracção no número de candidatos. Como vai ser o futuro deste sector de ensino?

O ensino superior português tem um primeiro período de crescimento que se inicia nos anos sessenta e se prolonga até meados da década de 70. Depois disso, no princípio dos anos 80, houve um período de estabilização e mesmo um certo decréscimo do número de estudantes, que ressurgiram em força após 1988. Passada a euforia, assiste-se, desde 1995, à diminuição do número de candidatos, que atinge sobretudo o ensino superior privado.
Apesar disso, e embora se tenha verificado um peso negativo na variação demográfica no mesmo período, Portugal foi o país da OCDE que registou o maior crescimento na taxa de frequência do ensino superior entre 1995 e 2000. Essa variação demográfica teve um impacto mais relevante nos outros níveis de ensino, provocando uma diminuição geral do número de alunos nos ensinos básico e secundário, mas o número de diplomados do ensino secundário manteve-se ao mesmo nível e foi suficiente para superar essa baixa demográfica.

A caminho de um mercado mundial de educação

No contexto que acabou de descrever, que perspectivas se abrem a médio e a longo prazo?

Não concordo com a ideia que considera inevitável o decréscimo da procura do ensino superior a médio e longo prazo. Quanto muito poderá assistir-se a uma diminuição da procura tradicional do ensino superior. Apesar de, em termos estatísticos, nos aproximarmos cada vez mais da taxa média europeia de frequência, isso não significa que se deva parar por aí. Segundo a OCDE, em 2001, em Portugal, apenas 10% dos homens e 17% das mulheres do grupo etário 25- 34 anos, tinha atingido o ensino terciário, contra 30% e 46 % na Finlândia e 45 e 50% na Irlanda que eram os países europeus que apresentavam os valores mais elevados. Na Grã-Bretanha e a Dinamarca o objectivo é expandir essa fasquia para os 50%. A área das pós-graduações, por exemplo, é um nicho de formação ainda pouco desenvolvido em Portugal.
Por outro lado, haverá a possibilidade, e até a necessidade, de readaptar o ensino superior a novos públicos, proporcionando formação de segunda oportunidade ou formação ao longo da vida.

Esse processo implicará uma reorganização das universidades...

Sim, não só ao nível da oferta como das metodologias de trabalho. Mas para que isso aconteça é necessário haver uma política de incentivo para o aparecimento desses novos públicos.

Seria inclusivamente um meio de auto-financiamento que poderia ajudar a resolver os graves problemas financeiros com que as universidades se debatem actualmente...

Há de facto problemas no financiamento das universidades e é necessário que seja o Estado a assumir o financiamento público do ensino superior. A tendência para reduzir o financiamento público do ensino superior não é exclusiva de Portugal. Em todos os países europeus os governos procuram obter receitas por outras vias, nomeadamente através da cobrança de propinas, justificando essa opção através da  necessidade de desenvolver um ensino superior de qualidade, que permita aumentar a competitividade e a capacidade de atracção de estudantes, etc...

Qual é a percentagem do Produto Interno Bruto português destinado ao ensino superior por comparação com os restantes países europeus?

Se analisarmos a questão em termos de despesa por estudante os valores são mais baixos do que a média. Segundo a OCDE (EDucation at a Glance, 2002) em 1999, as despesas anuais por estudante do ensino superior rondavam os 4800 dólares americanos em Portugal, quando a média da União Europeia era de 8500 e o valor para os EUA era superior a 19 mil, mantendo-se a paridade do poder de compra.
Se olharmos para as estatísticas verificamos que até 1999 o financiamento público no ensino superior teve um aumento. Mas, mesmo mantendo esta situação, é necessário continuar a fazer um esforço acrescido para que não aumentem as distâncias entre a realidade portuguesa e a europeia.

O processo de Bolonha irá mudar a face do ensino superior na europa tal como hoje a conhecemos. Apesar disso, o debate em Portugal sobre este tema parece ainda insipiente. Em que medida poderá influenciar o ensino superior português?

Na minha opinião, o processo de Bolonha é ao mesmo tempo um desafio e uma oportunidade que se coloca ao ensino superior português, podendo ser uma fonte catalizadora de reformas importantes, já que implica uma reestruturação da oferta de formação e das próprias metodologias de trabalho. Seria bom, no entanto, que essas reformas fossem o mais consensuais possível e planeadas de forma a abrangerem um período temporal de médio a longo prazo.
Uma das principais medidas associados a este processo preconiza, por exemplo, a existência de um sistema em dois ciclos, de pré-graduação e de pós-graduação, organizado em torno do Sistema Europeu de Transferência de Créditos (European Credit Transfer System, em língua inglesa).
Em Portugal, algumas instituições de ensino superior iniciaram já experiências com este sistema de creditação, mas a maioria baseia-se no regime presencial dos alunos, isto é, em função do número de horas assistidas. O ECTS, pelo contrário, põe a tónica no processo de aprendizagem e na carga de trabalho do aluno, o que implica não só uma definição muito clara dos objectivos e das competências a adquirir mas também uma reformulação das estratégias e das metodologias de ensino.  Um dos meus principais receios nesta matéria é que se tente fazer essa transição de um modo "automático", sem ter em conta as especificidades do ECTS. Esperemos que isso não aconteça...
O Tratado de Bolonha não é uma directiva nem implica qualquer tipo de imposição legal aos países signatários, mas, tendo em conta que se está em vias de criar uma área de ensino superior europeu onde nos queremos inserir, teremos necessariamente de nos saber adaptar.  Porém, espero que a lógica tecnocrática presente em grande medida no processo de Bolonha, pondo ênfase na necessidade de promover a competitividade do ensino superior da UE, não se sobreponha a tudo o resto.

Não será o processo de Bolonha mais um passo para a criação de um mercado mundial da educação?

Julgo que sim. Aliás, uma das principais questões referidas na Declaração de Bolonha refere-se precisamente à falta de atractividade do sistema de ensino superior europeu relativamente ao modelo anglo-saxónico, concretamente aos Estados Unidos e à Austrália. Não é por acaso que o processo de Bolonha se inicia após a divulgação, em 1998, do relatório francês Attali, sugestivamente intitulado "Por um modelo europeu de ensino superior", onde se defende exactamente um aumento do grau de atractividade no âmbito desse mercado mundial de educação, se assim lhe pudermos chamar.
É um facto que a Europa recebe menos estudantes relativamente àqueles que envia para fora, ao contrário do que acontece com os EUA e a Austrália. Neste último país, aliás, a oferta e venda de serviços educativos representa o terceiro sector de exportação, numa clara estratégia transnacional de franchising educativo. O Reino Unido segue esse exemplo, sendo o país europeu que consegue atrair um maior número de estudantes do exterior.
Com o processo de Bolonha pretende-se que este espaço comum europeu permita não só a mobilidade de estudantes e de trabalhadores entre os diversos países da mesma área geográfica, mas se apresente também como uma mais-valia que permita atrair a vinda de estudantes estrangeiros, nomeadamente através da atribuição de diplomas reconhecidos, os chamados joint venture degree .
Porém, receio que haja a possibilidade de governamentalização desto processo, já que, recordo, ele parte de uma iniciativa ministerial e os próprios órgãos políticos da União Europeia estão a exercer nele uma grande influência, o que, na minha perspectiva, não é positivo.

Ensino superior não deverá estar subordinado à lógica do mercado de trabalho

Que apreciação faz da actuação do ministro da Ciência e  Ensino Superior Pedro Lynce?

A reforma do ensino superior está actualmente na agenda de todos os países europeus, e a própria união europeia tem em curso um processo de reestruturação sobre o papel da universidade na sociedade do conhecimento. É natural que, neste contexto, a principal medida tomada pelo ministro tenha sido a de avançar com a Lei do Ordenamento e da Qualidade do Ensino Superior, que reforça, de certa forma, a centralização da regulação do ensino superior, ao mesmo tempo que dá margem de manobra para a introdução daquilo que alguns autores chamam uma lógica de mercado no sistema educativo.
No entanto, parece-me importante termos em conta as limitações inerentes à racionalização do sistema educativo em função das necessidades do mercado, já que se corre o perigo de ver o ensino superior transformado num instrumento de formação profissional. É certo que poderão existir problemas de eficiência nas instituições, mas não concordo com a imagem negativa associada ao ensino superior português subjacente no documento. Em Portugal existem instituições de qualidade duvidosa, mas também instituições de excelência.

Que vantagens vê na ligação mais estreita entre a ciência e o ensino superior?

Penso que será preciso esperar para ver que resultados produz, mas, em princípio, haverá motivos para colocar as duas áreas sob a mesma tutela, já que ensino superior e a ciência são campos vastos, com problemas específicos, ao mesmo tempo que poderá reforçar a  articulação entre o ensino e a investigação.

Pode falar-nos um pouco acerca do estudo em que está actualmente envolvida, centrado no movimento de contestação juvenil do ensino secundário?

O estudo integra-se num projecto mais vasto, subordinado ao tema "Movimentos Sociais, Protestos e Democracia Participativa", iniciativa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É um projecto que ainda está no início e que, em princípio, só estará concluído em 2005. Partindo de um fundo comum - a análise dos protestos da sociedade civil (saber porque contesta, como protesta, que lógicas a motivam, etc...), procurar através de estudos de caso reunir informação que permita fazer uma análise mais profunda das suas implicações.
No caso concreto do meu trabalho achei interessante analisar os protestos oriundos dos alunos do ensino secundário, através de entrevistas realizadas tanto junto daqueles que participam como dos que não participam, tentando obter uma visão das suas concepções de sociedade, de justiça e de alternativa às próprias medidas que contestam.

Temos uma juventude contestária?

Eu julgo que sim, apesar de considerar que estas formas de protesto têm motivações muito próprias e implicam um grau de mobilização diferente. É uma outra atitude... Os estudantes podem não ter uma grande grau de participação em acções ou órgãos institucionalizados, mas têm espírito de contestação.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ana Maria Seixas
Univ. de Coimbra
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ana Maria Seixas
Univ. de Coimbra

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