As crianças e os jovens assumem uma multiplicidade de papéis enquanto alunos que raramente são tidos em conta.
Philippe Perrenoud (1995) salienta que a criança é a eterna esquecida da relação escola-família, apesar de ser por ela, para ela e com ela que ela existe. Poderíamos extravasar esta afirmação para o contexto mais global da investigação em educação. O aluno é ainda bastante ignorado pela pesquisa educacional. Sabemos que muitas actividades deixam transparecer os interesses e as preocupações de quem as conduz. E os investigadores em educação exercem, em número significativo, actividade docente. Muitos trabalham até na área da formação de professores. Entende-se, pois, que reflictam as suas inquietações e o seu ponto de vista na actividade investigativa e, logo, que o ponto de vista dos alunos seja negligenciado. Na área em que tenho investigado mais, a da relação escola-família, tenho-me apercebido que a criança assume uma condição que se poderia caracterizar como a de omnipresente ausente. Ela é tornada invisível por grande parte da investigação nesta área; a sua voz esfuma-se na voz dos outros actores com quem aquela relação tende a ser confundida; ela emerge, amiúde, como objecto daquelas mesmas vozes; raramente sendo reconhecida como sujeito da relação. Esquece-se que ela própria é (parte da) escola; que ela própria é (parte da) família. Não raras vezes ela desempenha uma função de moeda de troca nas interacções regulares, quiçá quotidianas, entre docentes e encarregados de educação. Trata-se, curiosamente, de um aspecto geralmente ignorado pela investigação e bibliografia afim. E, no entanto, quantos pais não me têm ?confessado? não assumirem determinadas posições com receio de eventuais represálias sobre os seus filhos!? A criança aparece, neste caso, como uma espécie de elo mais fraco da cadeia. O papel mais tradicionalmente concedido à criança nesta relação é o de mensageira; o de vaivém (?go-between?, na expressão de Perrenoud); o de ?carteiro de serviço?, no dizer de uma docente de uma minha pesquisa etnográfica. É o de alguém que leva e traz recados. No entanto, mesmo aqui, está longe de ser um mero ?pombo-correio?. Enquanto actor social ela nunca é neutra numa relação da qual ela própria constitui parte e parcela. Mesmo como ?simples? mensageira ela pode deturpar o sentido de uma mensagem ao se enganar numa palavra cujo significado não conhecia, ao lhe atribuir uma entoação errada, ao se ?esquecer? de a transmitir atempadamente, ao se ?esquecer? de a dar a assinar, etc. As relações de poder costumam ser desiguais, mas não unilaterais. Também a criança não está desarmada. Aliás, Perrenoud ao caracterizá-la como sendo, simultaneamente, mensageira e mensagem (o meio é a mensagem, poderíamos dizer, glosando Mc Luhan) está a admiti-lo. O modo como chega a casa vinda da escola ou como chega à escola vinda de casa pode, só por si, revelar muito do seu estado de espírito, se vai bem ou mal alimentada, se aconteceu algo de especial, etc. Ela tem essa capacidade de revelar ? mesmo sem intenção ? muito do que se passa e acontece ?no outro lado? e que este provavelmente gostaria de deixar na sombra. Nalguns casos este papel por si desempenhado chega a servir de legitimação para o modo de relacionamento entre outros actores desta relação, como foi o caso da interacção entre as professoras e a associação de pais da escola do Segrel (cf. meu estudo etnográfico, 2003), em que as primeiras justificaram não ter fornecido uma informação à segunda com o argumento de que uma das docentes tinha já informado os seus alunos oralmente na turma. Estou a dar exemplos de situações em que a condição de aluno corresponde a uma faixa etária relativamente baixa, quando a sua autonomia é geralmente considerada reduzida. Se pensarmos no ensino secundário, ao invés, o panorama revela-se claramente outro. Mas mesmo aqui a linha do horizonte da investigação em educação não parece ser muito distinta. As crianças e os jovens assumem uma multiplicidade de papéis enquanto alunos que raramente são tidos em conta. A história costuma ser a dos vencedores, a investigação a dos investigadores... Investigação sobre a condição discente precisa-se, quanto mais não seja em nome de uma melhor docência!
Referências bibliográficas:
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Perrenoud, Philippe (1995), Ofício de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar, Porto: Porto Editora.
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Silva, Pedro (2003), Escola-Família, Uma Relação Armadilhada, Porto: Edições Afrontamento [no prelo].
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