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Ocultando a desigualdade

A declaração no final da cimeira de Lisboa em 2000 apelava para que a UE se tornasse a mais competitiva e dinâmica economia do mundo, com mais e melhores empregos e com maior coesão social. É sobre a relação entre o motor fundamental deste objectivo, o desenvolvimento de uma Economia do Conhecimento Europeia, e o apelo para uma maior coesão social (que, como tem sido referido, foi incluída a instâncias da presidência portuguesa) que eu gostaria de brevemente me deter.

O meu foco é um elemento central da coesão social, a legitimação que, na esteira de David Lockwood, eu assumo que está relacionada com as percepções das bases e dos produtos da distribuição de bens sociais, neste caso, de oportunidades educativas. Em particular, gostaria de considerar a relação entre a mudança qualitativa introduzida pela Economia do Conhecimento e ?quem é ensinado o quê?; assumo esta questão, e não o acesso, como sendo a base das oportunidades educativas, porque o acesso só por si, por mais importante que seja, é um indicador muito grosseiro das oportunidades educativas. (E é assaz significativo neste contexto que os 16 Indicadores de Qualidade para os Sistemas Educativos Europeus promulgados pela UE utilize o acesso ?simples? e não o ?acesso qualitativo?).
Vou enfatizar as formas pelas quais a desigualdade é justificada, explicada ? ou, como irei sugerir, ocultada ? como um indício de se a Economia do Conhecimento representa uma real reconfiguração, ou uma continuidade em relação aos discursos iniciais. Há 25 anos eu defendi que as desigualdades em ?quem ensina o quê? no sistema educativo inglês eram justificadas e explicadas por uma forma de meritocracia, mas que as desigualdades mais profundas do sistema, especialmente entre as escolas estatais e as escolas privadas, eram ocultadas através da operação de regras e de procedimentos que eram apenas conhecidas daqueles que delas mais aproveitavam; não havendo para a maioria maneira de descobrir como é que poderia alcançar os mesmos níveis dos das escolas privadas, porque as regras e os meios para tal não só não estavam codificados, como não havia provas de que existissem efectivamente. Esta ocultação foi então referida por mim como mística.
A Nova Gestão Pública que varreu grande parte do mundo ocidental nos anos 1990 parecia reconhecer isto na ênfase que colocava na prestação de contas. Em vez da versão mística, a transparência foi exigida a todos os serviços públicos. Isto poderia ter significado que as desigualdades e as suas bases foram expostas e, consequentemente, poderiam ser remediadas, representando uma grande e calorosa nova forma de resposta aos dois critérios de legitimação de Lockwood. Contudo, dois factores ofuscaram esta transparência. Primeiro, foi essencialmente confinada ao sector público, com o objectivo específico de desenraizar e substituir a ?captação por fornecedores?, isto é,  a alegada capacidade daqueles com experiência e saber num serviço para determinar a sua direcção e não apenas a sua implementação. Isto criou uma espécie de super transparência, sob a forma de uma cultura de auditoria que se abateu sobre o sector público. O outro limite era o de que a prestação de contas era operada predominantemente numa direcção que ia de baixo para cima; não se chegava a confrontar a prestação de contas daqueles que determinavam aquilo que se devia tornar transparente e os indicadores através dos quais tal desígnio devia ser alcançado. Assim, e paradoxalmente, uma transparência distorcida tornou-se numa ocultação da desigualdade.
A questão central passou a ser a de saber se a Economia do Conhecimento é susceptível de prover uma base mais segura para a igualdade de oportunidades educativas ? e em caso negativo, quais serão as formas de ocultação que poderia despoletar. Tal parece ser plausível de ser assumido como meio fundamental através do qual a Economia do Conhecimento pode lidar com a questão de fazer ?quem é ensinado o quê? mais iguai, determinando-o objectivamente, dado que o projecto da Economia do Conhecimento está intrinsecamente envolvido na e é dependente daquela distribuição. Mais, ele contém os meios, na forma da Tecnologia da Informação, para legitimar essa mesma distribuição através da sua colocação acima e fora da disputa social e política. Contudo, quando examinamos as bases deste tipo de postura, podemos ver que neste caso, também, a desigualdade das oportunidades educativas está também a ser ocultada e não superada. Efectivamente, pode conter elementos simultaneamente quer da mística, quer da transparência distorcida e ofuscada. Nos termos desta última, vemos limitações similares de âmbito daquilo que foi identificado na cultura da auditoria; mais uma vez, são aqueles que fazem as regras e  aqueles que desenham o sistema (neste caso motivados mais pelo lucro privado, do que pelo bem público, ainda que limitado) quem determina o que é que se deve tornar transparente a quem. Nos termos do primeiro, estes processos são avançados por uma ofuscação técnica que, como as regras não codificadas do sistema de classes inglês, ocultam as bases da desigualdade.
O que nos conduz, tanto no caso da Economia do Conhecimento como nos casos anteriores, à possibilidade de podermos encontrar o elemento comum nas bases da legitimação. Todos eles são, de maneiras diferentes, construções de grupos poderosos que procuram, e que possuem os meios para, perpetuar e aumentar o seu poder nos e pelos meios que empregam ou que permitem legitimar ou esconder esse poder. Portanto, se as formas de ocultação do poder foram possivelmente reconfiguradas, a desigualdade que velam permanece.


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Roger Dale
Univ. de Bristol, Grã-Bretanha
Roger Dale
Univ. de Bristol, Grã-Bretanha

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