Quem já entra na vida perdendo, não quer perder mais nada (?) nem que para isso tenha que brigar e receber reprimenda. (?) as brigas estão presentes também entre crianças burguesas mas não tão freqüentemente a ponto de tumultuar a aula, incluídas que estavam na sociedade disciplinar antes de chegarem à escola.
Meninos encarnados não aparecem nos dados estatísticos que informam quantitativamente sobre fracasso escolar mas desinformam sobre seu modo de ser e estar no mundo, sua lógica e sua ética. São meninos que causam problemas de que as professoras se ressentem, sobretudo várias brigas num só dia de aula.Tentando uma aproximação sensível desses meninos, percebemos que, entre eles, as brigas possuem várias conotações, desde o brincar de brigar, à extensão de conflitos da comunidade à escola, além de uma tradução em negativo do capitalismo selvagem. Quem já entra na vida perdendo, não quer perder mais nada: desde a chance de escolher primeiro o lugar, o hidrocor, a caneta, até a de obter atenção da professora, nem que para isso tenha que brigar e receber reprimenda. Sabemos que as brigas estão presentes também entre crianças burguesas mas não tão freqüentemente a ponto de tumultuar a aula, incluídas que estavam na sociedade disciplinar antes de chegarem à escola. Os meninos de classes populares sabem difusamente o quanto é grande o fosso que os separam dos incluídos. Não podem esperar; amanhã é um tempo muito longínquo para quem tem urgências não atendidas hoje. Querem aqui e agora alguma vantagem, por mínima que seja, algo que possam contar e faça diferença em meio ao deserto da indiferença a que se vêem relegados. Destaco um diálogo travado com Rafael:
? Você me leva, só eu, para andar no seu carro? ? E por que eu levaria só você? ? Então leva eu e o meu amigo? ? E os outros? Como é que eu posso levar vocês dois e não levar todos os outros? ? Não fala para eles, ora. A gente diz que vai buscar água ... ? Mas você acha que é justo a gente enganar?
Sua resposta foi corporal: um dar de ombros e um trejeito de aborrecimento. No seu corpo expressavam-se alguns sentidos que colocavam em questão a nossa lógica. O que é justo para quem sofre na carne a injustiça social, precocemente internalizada? Como não desenvolver, em resposta, astúcias para tirar vantagem do sentimento de culpa da burguesia? Tentando ampliar a compreensão do seu modo de compreender, resgato uma de suas brigas. O motivo era dos mais comuns: tomar da colega o livrinho conquistado no jogo. Intervi, tentando mediar o conflito:
? Você podia escolher jogar e não quis.Você preferiu o teatro. ? É, mas a tia não me deu a máscara. ? As máscaras são usadas só no teatro, para que você e outros meninos possam brincar, não é? Se ela der as máscaras, como fazer teatro depois? ? Mas você deu o livro para ela. ? Eu não dei não. Ela ganhou o livro no jogo.
Para nossa surpresa, entregou o livro à colega sem se enfurecer, como freqüentemente acontecia. O jogo, em que se pode ganhar ou perder, fizera a diferença entre brigar e acatar? Outra questão: se Rafael era capaz de brigar pelo livro, por que parecia não demonstrar interesse no aprendizado da leitura e da escrita? Não valeria a pena lutar para se apropriar da escrita? Essa chance, no entanto, parecia perdida, de antemão, para ele. Uma leitura de mundo pela ótica dos dominantes o levava a descrer de suas possibilidades: ?Viu, viu , você não quis fazer para mim, agora o dela tá todo bonitão e o meu tá todo horrível?. A linguagem, que segundo Yaguello, «conjuga regra e turbulência», em nossa hipótese, se afigurava para Rafael apenas como dever de obediência ao código, sob ameaça de ser menos. Nossa «ação-reflexão-ação » prosseguiu na biblioteca do Campus, onde vários alunos participavam de contação de histórias. Cada um podia escolher, na estante de literatura infantil, dois livros: uma história que lhe seria contada e outra que ele mesmo leria. Observei que Rafael, visivelmente feliz, escolhera apenas um livrinho, exclamando: «Esse eu posso ler». Tratava-se de um livro sem legenda, o que lhe possibilitava a chance de ler. Nestas condições, não se veria como perdedor. Seu amigo escolheu um livro com várias histórias e pouca ilustração. Ouviu a que escolheu, leu duas outras e, findo o tempo previsto, revoltou-se ao perder a chance de ler mais. Eis a extensão do nosso desafio: transformar a escrita, lida por Rafael como código perverso que o condena a ser menos, em uma linguagem potencializadora, aberta a «ser mais», como seu amigo nos pareceu compreender.
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