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Quem tem medo das ideologias?
 Em Sociologia, diz-se que "ideologia" é um conjunto de ideias e representações que os grupos sociais criam acerca de si mesmos para explicar o mundo que os rodeia e o papel que nele representam. A partir disto, quem, tendo o poder de influenciar os outros (professores, políticos, publicistas, etc.), pensar que a melhor formação cívica deverá "despir-se de ideologias", porque  o indivíduo se autonomiza com o mero exercício da liberdade,  está equivocado. Na verdade, a cultura não é um bem genético: aprende-se e, conforme o sentido do ensinamento, induz à racionalização da liberdade.
 No espaço cosmopolita em que habitamos, sujeitos a pressões, pulsões e compulsões de toda a espécie,   tudo o que nos envolve (o ar que respiramos, a terra que pisamos, a família, a escola, o meio e o país a que pertencemos) influencia a nossa "maneira" de nele estar, começando, inelutavelmente, por averbar  inscrições na "matriz" cognitiva (as dos usos,  costumes e  tradições), pelo que,  logo desde a mais tenra idade, ela deixa de ser uma "página em branco".
 Não é necessário  avocar conspícuos  suportes teóricos para valorar o que está ao alcance da comum observação e da análise mais básica: a impossibilidade de, na nossa "aldeia global", viver "em natureza", qual  bosquímano nos recessos do  Calaari  ou índio no recôndito do Amazonas. Isto é, já não poderíamos sobreviver em estado de "pré-lógica" (como dizia Lévy-Bruhl), satisfazendo-nos com o livre uso das  faculdades primárias que a Mãe Natura parcimoniosamente concedeu a todos os seres animados (homens, macacos ou cachorros), em acordo com as  necessidades existenciais de cada espécie. Mas, até neste particular, alegar  que o homem age "em consciência" e o cachorro "por instinto" quer dizer esta mesmíssima  coisa: a capacidade potencial  (esta, sim, inata ) de escolher...                                   
 De facto,  já  não há mais lugar para Tarzans nem para "bons selvagens", cuja competência natural era suficiente para identificar os alimentos saudáveis, as plantas que curam e as que matam, os amigos e os inimigos, o que salva e o que ameaça - enfim, para, deduzindo uma "síntese" dos "choques dos contrários" que se lhe deparavam,  conscientificar o Bom e o Mau. Depois, quando as comunidades "evoluiram" e se deram conta, ao cabo de provas e contra-provas, que as regras "eternas" eram solipsistas,  excludentes e impeditivas de uma verdadeira "harmonia universal", surgiram os filósofos, os sacerdotes e os políticos para, redefinindo o Bom e o Mau, em função das  necessidades das épocas e dos espaços, regulamentarem a liberdade espontânea,  ideologizando as "escolhas": assim emergiram  os códigos de Hamurábi e de Napoleão, as doutrinas da Bíblia e do Corão, as Constituições dos países, os Estatutos dos partidos, com as suas catequeses e militâncias.
 Por isso, quando um primeiro-ministro, chefe de partido político, para impor  o "seu" sistema de Governo,  diz que o povo não precisa de ideologias mas de empregos, e um professor, apostado em  motivar os alunos para a moral e a cidadania, defende que a educação se deve despir de tal "embaraço", - não ousando nenhum deles afirmar  que a alienação é a melhor "escolha" -  estão apenas a sugerir  que são  "más" as ideologias  dos oponentes e "boa" é apenas a que eles postulam (falaciosamente    representada como  uma não-ideologia) em acordo com os interesses do grupo social a que pertencem ou a que aspiram... Ou mais perfunctoriamente ainda: que é desejável que o homem - ser racional, gregário e dialéctico por excelência  - viva e progrida sem ideias organizadas para fazer "escolhas" e se compraza em existir tão "naturalmente" como as gavinhas dos  feijões,  que enrolam sempre para o mesmo lado...

  
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

João Rita
Jornalista, Porto
João Rita
Jornalista, Porto

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