Habitavam nas margens da sociedade; e a sua marginalidade
social reflectia-se na marginalidade geográfica. Reduzidos ao estatuto de párias,
reagiam da única forma aceitável para si próprios a uma identificação negativa,
fazendo recair sobre os outros a violência que sobre eles era exercida.
Lembra-se do terror que aquele nome inspirava quando era miúdo.
Para ele e para toda a gente, aquela não era gente com quem se pudesse ou devesse
conviver. Habitavam nas margens da sociedade; e a sua marginalidade social reflectia-se
na marginalidade geográfica. Viviam numas cabanas miseráveis separados da malha
urbana da vila. Reduzidos ao estatuto de párias, numa sociedade que os estigmatizava
e cuja mácula parecia resistir à passagem das gerações e à marcha do progresso
social, reagiam da única forma aceitável para si próprios a uma identificação
negativa, fazendo recair sobre os outros a violência que sobre eles era exercida.
A impureza do seu nome, dizia-se, teve origem num antepassado tenebroso, famoso
salteador, chefe de quadrilha. Homem violento, que não temia nada nem ninguém
e que, na explicação da gente da terra, passou aos seus descendentes os maus
instintos. Numa comunidade que sempre os viu como uma humanidade inferior, acabaram
por confirmar o destino que esta lhes profetizara, de criminalidade, prostituição,
drogas e prisões. Poucos elementos desta família parecem escapar à marginalidade
que aquele antepassado iniciou.
No ano passado calhou-lhe um destes miúdos na turma do 1º ciclo. Mais de trinta
anos depois, o mesmo nome continua a inspirar as mesmas atitudes preconceituosas.
Os pais das outras crianças manifestam os mesmos receios pelo contacto dos filhos
com aquela criança. Não pertence a outra etnia ou religião, e o seu lugar de
pertença é o mesmo das outras crianças, onde a família sempre viveu. Contudo,
é exactamente este conhecimento da sua genealogia, o conhecimento que os outros
têm do seu lugar na teia social que recai sobre ela como uma maldição. É que
a sua pertença se define precisamente pela exclusão, à maneira de um pária.
O facto de conhecer a realidade local, que era a sua, permitiu-lhe encarar a
situação com naturalidade, procurando tratar a criança exactamente da mesma
maneira como lidava com todas as outras. Um dia, na sequência de uma chamada
de atenção, veio a família do aluno em peso para lhe bater. Teve que chamar
a polícia para poder sair da escola. Ameaçaram-no. Passou o resto do ano cheio
de medo que algum membro do clã o agredisse. Pediu que transferissem aquele
aluno para outra turma. Como tal não aconteceu, transferiu-se ele para outra
escola.
Tê-lo?ia feito se não conhecesse a história daquela família? Se não fizesse
parte também da mesma comunidade que sempre a olhou como gente inferior? A imagem
que tem daquela criança está, desde o primeiro dia em que os pais lhe apareceram
na escola, manchada pela diferença. O medo antecipado de represálias por parte
do clã pária só se justifica porque as representações que o nome evoca para
este professor são as mesmas que evoca ao resto da comunidade a que pertence.
A pertença e o conhecimento da realidade local pode desfavorecer os excluídos
se o professor trouxer para dentro da escola as clivagens sociais do seu meio
social de origem.
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