Ando praticamente, há 40 anos, a escrever, na Imprensa,
sobre o fenómeno desportivo e num ponto havemos todos de convir: não me debruço
alvissareiro sobre insossas querelas domésticas. A não ser que o imprevisto
dos lances, o dramatismo das situações e a sua repercussão na sociedade a tanto
me obriga. Aliás, este jornal é um indefectível defensor da passagem, na Imprensa,
da informação à formação, do meramente fenoménico ao verdadeiramente essencial.
Assim, à pergunta: o que é um professor de Educação Física? A resposta parece
ser imediatamente: é o docente que ensina a prática da Educação Física. Ficamos
assim ao nível da prática social. E o terreno formal da lógica científica não
tem aqui lugar? Não podemos então acrescentar que a Educação Física é a teoria
científica que os professores de Educação Física executam e estudam? De facto,
uma área científica não se esgota na imediatez da sua positividade fáctica ou
prática, pois que tem em si mesma uma essencial auto-crítica ou negatividade
que lhe permite a evolução. Assim, a Educação Física é uma ocupação de profissionais
e deve ser também um ?corpus teórico? onde essa profissão se fundamenta. Com
efeito, uma profissão não se confunde com um conjunto de ?amadores indocumentados?.
O código profissional tem raiz epistemológica, ética e política.
Uma definição unicamente prática da Educação Física, embora a exaustiva operosidade
dos seus profissionais, entra em contradição com a sua vocação científica pois
que não há desenvolvimento sem a permanente ruptura com a prática estabelecida
e oficialmente aceite. A ?intersubjectividade científica? (Popper) é a possibilidade
de refutação da prática que os Ministérios da Educação promulgam. Todos sabemos
que a prática social tem ávidas raízes no húmus da vida de todos os dias. Só
que o conhecimento científico tem como dimensão primacial transcender a positividade
estabelecida pelo senso comum, pela ideologia dominante, pelo poder político,
se bem que não deva negligenciar as suas razões e interesses, mesmo que entenda
que eles não acertam o passo com a ampulheta da História. Há sempre mais ciência
numa prática profissional ou nesta do que numa atrevida prática profissional
desonesta. No entanto, uma prática profissional só se liberta da sua caducidade
histórica, quando se encontra firmemente vinculada a uma constante construção
teórica, que a integra num conceito lato e fundante de História. De facto, tudo
é História e tudo deve ser, enquanto ciência e consciência, uma progressiva
realização da liberdade humana.
Por isso, a chamada Educação Física não se constrói, hoje, retrocedendo às certezas
de há trinta ou quarenta anos atrás, mas ao espírito crítico que delas duvidou
e à dialéctica que delas se afastou. Relembro a crítica acerba à sociologia
de Adorno, Horkheimer e Marcuse, acusando-a de manifestar-se unicamente através
da linguagem da Administração e de servilmente deixar-se manipular pelo Poder
e seus áulicos. Não é a ciência que domina imediatamente as acções dos reaccionários
de todos os matizes, mas alguns interesses frequentemente associados a uma declarada
animadversão a qualquer transformação (ou figura) revolucionária. Todo o desenvolvimento
implica o desenvolvimento de uma nova forma de racionalidade e a rebeldia diante
de matrizes hermenêuticas pré-estabelecidas. A Educação Física é o espaço escolar
onde, através da Motricidade Humana, melhor pode exercitar-se o aluno no exercício
da liberdade, da autonomia, do pluralismo, da auto-organização. As políticas
educativas, nesta área, tendo no entanto a desenvolver ideias e programas onde
conta, acima do mais, a produção de matrizes higiénicas e biológicas. Fundamental
para a constituição de uma axiomática actual da chamada Educação Física será
estudá-la como ramo pedagógico de uma ciência humana. E, neste caso, da organização
curricular à arquitectura organizacional tudo deverá ser repensado, rejeitando-se
o modelo rígido, determinista, controlado e formatador, muito em voga.
Popper, no seu livro, O universo aberto (Publicações Dom Quixote, p.
129) diz-nos que tudo é parcialmente causal, parcialmente probabilístico, parcialmente
indeterminado. O desportista sabe-o melhor do que ninguém. Daí que as aulas
de Educação Física que o Ministério da Educação promove possam transformar-se
em realidades artificiais, mesmo degradantes, tal é o esforço autoritário de
formatação que delas emerge. Há paternalismo a mais nas aulas de Educação Física
que alguns fomentam e prescrevem por decreto-lei. E o paternalismo infantiliza
as pessoas, muitas vezes irremediavelmente. Recordo, para terminar, o Ilya Prigogine
de O fim das certezas (Gradiva, pp.71-72), ao acentuar a superioridade
dos sistemas auto-organizadores em relação à pedagogia e à própria tecnologia
actuais. Um Ministério da Educação, cientificamente esclarecido, não deverá
continuar a insistir numa política de controlo mecanicista sobre o espaço escolar
(repito) onde é mais vivo e premente o exercício da liberdade.
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