Entendida a poesia como matéria de renovada criação expressiva ou mesmo
claramente assumida como "arma" poética, pode dizer-se que, logo no primeiro
livro de Veiga Leitão, se adivinhavam as linhas de um singular percurso rebelde
e dorido, marcado ainda e sempre pela paixão e revolta que, como observara
Jorge de Sena em relação a Latitude (1950), evidenciava "a sua simplicidade
ingénua e forte, que transcende todo o literatismo apaixonado em que muito
neo-realismo se perdeu". Mas foi com Noite de Pedra (1955) que este poeta
portuense de sentida saudade, enquadrando-se nitidamente na segunda vaga do
neo-realismo, confirmou a qualidade maior de ser uma das vozes mais
representativas da sua geração, mesmo hoje que passam quinze anos sobre a sua
morte física e na lembrança de completar noventa anos se ainda vivesse.
Após um longo silêncio em que o poeta se fechou no seu canto, viajou pelo
Mundo, ouviu os comentários de muitos críticos e estudiosos, consolidou as
impressões sobre as leituras do seu universo poético, surgiu Ciclo de Pedras
(1964) antes de se radicar no Brasil por alguns anos e sempre cantando: "No
silêncio do caminho aberto / quanto maior a alma maior o deserto, / maior a
sede e a miragem / do mundo à nossa imagem". E assim essas "imagens" do
mundo, amassadas e pressentidas por dentro, na realidade do canto e do sonho, o
Poeta as pôde cantar de forma mais grave e violenta em Noite de Pedra, porque
foi nesse celebrado livro que Luís Veiga Leitão alcançou a dimensão mais
depurada da sua expressividade. E, sendo apenas o desejo de cantar a solidão e
o desespero, revelou-se como a forma de comunicar com os que estavam para lá
das grades, nesse mundo fechado e violento, que se ergueu como símbolo de
revolta e de insatisfação, mas também de memória e paixão, porque o sol não
entrava nesse mundo ou este não corria à medida dos sonhos sempre sonhados, a
"sentinela" não dormia e o seu canto podia ainda ser entendido ou decifrado.
Mas tantos anos passados e esquecida a realidade humana e política que lhe
subjaz, Noite de Pedra representa esse limite perfeito que resumia todas as
preocupações do poeta e assim as transmitia descarnadas do que era inútil ou
desnecessário, porque os poemas eram talhados em imagens desossadas, secas,
quase vibráteis para poderem exprimir o sentido mais essencial do discurso
dessa paixão e revolta de tantos anos: "Noite de pedra / cerração de muros /
arames farpados / grades de ferro / nas campas rasas / duma luz morta".
Por isso, na distância dos anos, Noite de Pedra é ainda um livro-símbolo de
tantos protestos e gritos lançados em noites de pesadelo fascista, não por
dizer isso clara e bem declaradamente, mas porque os poemas de Veiga Leitão se
forjaram na consciência dilacerada de uma revolta asfixiada, enclausurada e
sempre livre, entre o canto e a paixão de querer que as coisas da vida e do
mundo de facto se alterassem: "Fora, na vida tumultuária, / foste uma doce e boa
companhia, / mas aqui, muito mais, Poesia, / foste necessária".
Por entre a releitura dos seus poemas e neste renovado contacto com o Poeta de
Latitude, sabemos como quinze anos passados depois da sua morte continua vivo e
caminha ainda a nosso lado. E, sem nenhuma irreverência, dizemos que a memória
de Luís Veiga Leitão se não perde na distância do tempo, na evocação da cidade
que hoje o perpetua numa das suas artérias, muito perto de uma outra que é a
Rua da Saudade, e ouvi-lo cantar como um certo "Catulo da Paixão Portuense" por
esta cidade que foi sua de muitos e largos anos:
Minha cidade de funduras compactas
granitos "dente de cavalo"
entre as quais corre uma língua
de espelhos marginais,
granitos que sobem no ímpeto das torres
e olham, olhos fechados, o sonoro
poente das clarabóias, íris ardendo
Pedras da minha pedra
onde moro e morro.
LUIS VEIGA LEITÃO
OBRA COMPLETA
Ed. Campo das Letras / Porto.
|