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Novas áreas curriculares: O acessório e o essencial

Dizia o actual Ministro da Educação, numa entrevista concedida ao J.N., em 08.09.2002, que não se podia continuar a confundir o acessório com o essencial. Coisa que, na sua opinião, aqueles que o antecederam no cargo pareciam ter esquecido quando instituíram as denominadas Áreas Curriculares Não-Disciplinares nos programas do Ensino Básico.

Segundo a leitura do ministro estas áreas corresponderiam a uma decisão através da qual se valorizava o acessório em detrimento do essencial, o qual, presume-se, seriam, na sua opinião, as aprendizagens nas áreas disciplinares tradicionais. Apesar disso, o ministro, nessa entrevista, assegurou-nos que, graças à sua moderação e bom senso políticos, não iria suspender a Reorganização Curricular do Ensino Básico. Decretou o fim do par pedagógico, ao nível do 3º Ciclo, nas áreas de Estudo Acompanhado e de Projecto, prometendo ordem e poupança. Fez, mais uma vez, a vontade à Drª Manuela Ferreira Leite e conseguiu que circunscrevêssemos a reflexão acerca destas áreas às vantagens e desvantagens do trabalho realizado ou por uma equipa de docentes ou por um único professor responsável pelo projecto de intervenção educativa a desenvolver nessas áreas.
Será esta, contudo, uma discussão útil? É indubitavelmente uma discussão incontornável, mas não é a discussão que importa empreender, sobretudo depois do ministro da Educação ter afirmado o que afirmou. A questão das condições pedagógicas necessárias à construção de um projecto de escolaridade básica é sempre uma questão subsequente ao conjunto de respostas que se produzem acerca da credibilidade cultural, da pertinência social e da democraticidade de um tal projecto. E o essencial é discutir se, no âmbito deste projecto, se pode desvalorizar, em nome de um academicismo que tem conduzido professores e alunos para um beco sem saída, o desenvolvimento de competências tão decisivas no mundo contemporâneo como, entre outras, a dos alunos serem capazes de se confrontar de forma gratificante, significativa e construtiva com a informação proveniente do exterior através da linguagem escrita e de outras fontes, de desenvolver métodos de trabalho e de estudo adequados, de avaliar procedimentos, recursos e resultados ou de tomar decisões pertinentes quer no domínio da planificação quer no domínio da realização das tarefas escolares. O essencial é discutir se faz sentido opor de forma irredutível conteúdos programáticos a processos de trabalho ou se continua a ser possível desvalorizar os segundos face aos primeiros. O essencial é discutir, também, quais as vantagens de uma escola onde sistematicamente aqueles que fazem as perguntas são, igualmente, aqueles que desde sempre conhecem as respostas. O essencial é discutir, entre outras coisas, se é incompatível um ambiente de rigor e exigência com a organização de ambientes onde os alunos possam assumir responsabilidades na vida quotidiana das turmas, participar na definição dos programas de trabalho, bem como na sua implementação, e mesmo assim aprender e educar-se.
Apesar de todas as vicissitudes, equívocos e dúvidas as áreas curriculares não-disciplinares tiveram o mérito de lançar o debate sobre as finalidades do projecto de escolaridade básica, assim como permitiram que muitas escolas, professores e alunos pudessem encontrar outros sentidos para o trabalho escolar. Não sendo obrigatório implementar-se essas áreas para conferir uma decisiva visibilidade aos objectivos que as mesmas pressupõem, era obrigatório, no entanto, emitir um sinal inequívoco acerca da importância pedagógica e da prioridade que as escolas do Ensino Básico, e não só, lhes deveriam conferir. E, nalgumas escolas, isso aconteceu. As áreas curriculares não-disciplinares permitiram criar espaços de experimentação didáctico-pedagógica que a prazo poderiam funcionar localmente, e de forma contextualizada, como espaços de interpelação crítica e sustentada das práticas educativas que nessas mesmas escolas tinham lugar. Cremos mesmo que esta era uma das dimensões mais interessantes e prometedoras daquelas áreas, já que poderiam possibilitar inverter o sentido tradicional dos processos de inovação pedagógica, potenciando, assim, a afirmação das organizações escolares no âmbito da relação que usualmente estabelecem com os diversos centros que as enquadram. É neste sentido que, na nossa opinião, a extinção do par pedagógico no 3º Ciclo corresponde a uma decisão que priva as escolas de instrumentos úteis e necessários ao seu desenvolvimento como instituições educativas pertinentes e democráticas.
Se o senhor ministro da Educação compreendesse isto, se estivesse interessado e fosse capaz de compreender isto, talvez não aceitasse ser um ministro acessório para um conjunto de decisões políticas que, no essencial, não lhe dizem respeito.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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