Vale de Campanhã
O Porto desconhecido
Há determinados sítios nas cidades que parecem
estar escondidos com o único propósito de serem descobertos. Estão
lá, mas escapam-nos sorrateiramente ao olhar. A freguesia de Campanhã,
no Porto, é uma desses lugares. Terra de origens remotas, mantém
ainda muitas das características rurais que marcaram a sua história.
Um grupo de alunos e professores de uma escola local partiu à sua descoberta
e desenvolveu um interessante projecto.
Até parece que saímos do Porto. A Estrada da
Circunvalação fica para trás, e penetramos através
de uma rua estreita no bucólico vale do rio Tinto - um afluente do Douro,
que corre um quilómetro mais abaixo -, no lugar do Pêgo Negro.
O pequeno aglomerado de casas faz lembrar uma aldeia. Junto à ponte existem
vestígios do que um dia foi um moinho, um dos muitos que proliferavam
na região, engolido hoje por um conjunto de habitações
precárias que sobranceiam a margem.
A moagem foi uma actividade que se manteve nesta periferia rural do Porto até
aos anos 60 e a primeira referência documental conhecida sobre ela remonta
a 1200. Em 1836 encontrava-se registo de 25 moleiros no concelho de Campanhã,
um dos quais laborava precisamente aqui, no Pêgo Negro.
O Tinto, esse, está morto. Não passa de um esgoto a céu
aberto, onde flutuam restos de lixo doméstico e industrial, sem qualquer
sinal de peixe ou de outras espécies aquáticas (penso naquele
que poderia ser um agradável passeio ribeirinho...). A Estação
de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) do Freixo, localizada na proximidade,
filtra apenas a poluição do último trecho deste rio, antes
de este desaguar no Douro, pelo que seria necessário instalar uma estrutura
semelhante a nascente. Antes disto, porém, as autarquias do Porto e de
Gondomar teriam de proceder à instalação de saneamento
básico, que naquela área tem uma cobertura ínfima.
Atravessando a ponte, sobe-se a rua do Pêgo Negro e chega-se ao horto
municipal, situado na quinta das Areias. É também um local desconhecido
da maioria dos portuenses, mas vale a pena visitá-lo. A primeira referência
que se lhe conhece data do século XVIII e em 1937 foi comprada pela Câmara
Municipal do Porto. Com cerca de três hectares, o horto municipal alberga
dezenas de espécies de flores, arbustáceas e árvores, sendo
possível, apesar de não ter como finalidade a comercialização
ao público, adquirir uma ou outra planta.
Andando cerca de meio quilómetro para sudoeste chegamos ao lugar de Azevedo
de Campanhã, paragem terminal da linha 80 da Sociedade de Transportes
Colectivos do Porto, a única que serve este local remoto da cidade. Não
fossem as torres de betão erguidas do outro lado do vale e do rio, em
Gaia, e dir-se-ia, mais uma vez, que a cidade tinha desaparecido misteriosamente
para dar lugar a uma pequena aldeia, com os seus muros de granito e pequenos
quintais denotando a existência de uma agricultura de subsistência.
Por estas bandas a vida corre lenta. As pessoas encontram-se na rua, conversam
sem pressa e despedem-se até encontrar o vizinho seguinte, num ritual
que já praticamente desapareceu na "cidade". Homens aparentemente
desocupados, donas de casa e transeuntes menos característicos cruzam-se
com prostitutas e toxicodependentes à entrada do Lagarteiro, um bairro
social com graves problemas sócio-económicos.
A afabilidade das pessoas anda de mão dada com a sua postura simples.
A qualquer pergunta sobre o património da freguesia as pessoas desdobram-se
em explicações. A curiosidade do jornalista e a máquina
fotográfica a tiracolo conduzem invariavelmente à mesma pergunta:
"É para um jornal"? "Sim, para a Página da Educação."
A resposta parece não satisfazer a expectativa dos inquiridores, que
talvez esperassem, no mínimo, conhecer o nome do órgão
de comunicação em causa. Em qualquer dos casos, a informação
é prontamente disponibilizada, ora com mais ou menos certeza.
Desta vez queríamos saber onde se localizava a igreja do Senhor. do Calvário
- ou do Forte, por se situar no mesmo local onde esteve sediado um aquartelamento
de tropas miguelistas durante o período das guerras liberais, que ficou
célebre pelo Cerco do Porto. Subindo uma ladeira estreita, encontra-se
no alto do morro uma pequena igreja, situada num terreiro de festas. As cadeiras
em metal, fixadas ao chão e dispostas em fila, deixam imaginar os bailaricos
- eles de um lado, elas do outro - que ali ainda devem ter lugar. Cá
fora, uma família almoça sob a sombra de uns plátanos e
convida o recém-chegado a partilhar a refeição.
Poucos saberão que esta terra, uma espécie de península
situada no sudeste da freguesia de Campanhã, integra ainda os limites
da cidade do Porto - cuja fronteira é habitualmente associada à
Estrada de Circunvalação. É uma área esquecida,
praticamente ao abandono, cuja história está intimamente ligada
à produção agrícola que, em tempos, abastecia o
burgo. Desse período restam quintas dispersas, lentamente conquistadas
pela malha urbana. Apesar disso, e de acordo com o levantamento aerofotogramétrico
de 1979, ainda mantém praticamente os mesmos limites do final do século
XIX. Desde essa altura até aos nossos dias pouco mudou.
Um património para descobrir
Entramos agora numa zona de características mais urbanas,
onde os edifícios e as vias de comunicação começam
a transformar a paisagem. Descendo a rua de Azevedo, avista-se, do outro lado
da Via de Cintura de Interna (VCI), o suposto "início" do Porto.
Ao longe, vislumbra-se já a Quinta de Bonjóia. Foi doada por um
aristocrata ao cabido da Sé do Porto em 1402, e pensa-se que a casa,
datada de 1795, seja da autoria do arquitecto Nicolau Nasoni, que deixou um
valioso legado patrimonial à cidade. A Fundação para o
Desenvolvimento do Vale de Campanhã comprou-a em 1995 e recuperou o edifício
para ali instalar um centro de serviços sociais, nomeadamente para apoio
às associações locais e realização de acções
de formação profissional. Tem um jardim agradável e vale
a pena ser visitado. Não fosse a proximidade da via rápida e seria
um local ainda mais aprazível.
É tempo para descansar da caminhada e refrescar a garganta. Seguindo
pela rua de Bonjóia, entramos no café "Atleta", propriedade
da senhora Conceição, que conversa animadamente com duas vizinhas.
À soleira, um grupo de homens também se entretém a falar,
bebendo umas cervejas e comentando as últimas transferências do
futebol. Hasteada no alto de um muro, a bandeira do Futebol Clube do Porto ondula
ao vento, ou não estivéssemos nós em pleno feudo portista.
Ali perto ficam os vestígios de um antigo aqueduto, agora ensombrado
pela grande placa de betão que serve de viaduto à VCI, e a Fonte
do Milagre da Senhora, uma das muitas manifestações de crença
religiosa que se encontram por todo o percurso.
Conta-se, sobre o milagre da Senhora, que a sua imagem, ao regressar no andor
de uma romaria realizada no Porto, onde tinha ido pedir chuva, a 22 de Março
de 1742 (um ano de grande seca), caiu do andor naquele local e a água
terá brotado miraculosamente por entre as pedras. Além disso,
diz-se que essas águas teriam efeitos extraordinários, Hoje, a
fonte está seca.
A estação ferroviária de Campanhã fica nas vizinhanças.
É a principal estação da cidade e em redor dela proliferam
"ilhas" - pequenos conjuntos de casas dispostas em fila, com um pátio
comum ao meio, onde as condições de salubridade são muito
más. De acordo com um levantamento da autarquia, praticamente metade
delas não possui saneamento básico e muitas casas de banho ainda
são de utilização comunitária. Estes bairros populares
são uma marca viva do período de industrialização
do início de século no Porto, que lentamente vai desaparecendo,
talvez não ao ritmo do que seria desejável.
Descendo a Rua do Freixo, encontramos junto ao rio Douro o Palácio do
Freixo, um dos mais magníficos edifícios oitocentistas da cidade,
também ele da autoria de Nasoni. Construído em 1742, está
classificado como património nacional desde 1910. Será ali que,
terminadas as obras de recuperação, ficará sediada a Área
Metropolitana do Porto. Mesmo ao lado, situa-se a antiga fábrica de Moagem
Harmonia, que futuramente albergará o Museu da Ciência e Tecnologia.
O conjunto de equipamentos culturais completa-se com o Museu da Imprensa. Entre
as milhares de peças que constituem o seu espólio, estão
algumas máquinas raras que representam verdadeiras relíquias da
indústria gráfica. A par deste espólio, os visitantes podem
apreciar um conjunto de réplicas dos primórdios da imprensa tipográfica
coreana, anterior a Gutenberg. Outra das particularidades deste museu é
a sua dedicação sistemática à caricatura, fazendo
deste sector artístico-jornalístico um dos eixos da sua actividade.
O museu, ainda na sua primeira fase, foi inaugurado em 1997 e pertence à
Associação Museu de Imprensa, uma instituição sem
fins lucrativos. Está provisoriamente instalado num antigo armazém
industrial, apesar de existir um projecto para a construção de
um novo edifício, cuja data de conclusão, porém, não
está ainda definida.
A recuperação do espaço envolvente a este pólo cultural,
actualmente em execução, irá proporcionar a criação
de uma área verde com cerca de cinco hectares, representando um novo
espaço de lazer e cultura na cidade.
A escola ao serviço da comunidade
A origem do Vale de Campanhã é remota. Terá
sido habitada já no Paleolítico e pensa-se que durante a Idade
do Ferro, na zona de Noeda, próxima da confluência dos rios Tinto
e Torto, terá existido um castro. De acordo com fontes históricas,
foram os Romanos quem esteve na origem da sua actual designação,
que derivará de Campanius, o fundador da villa campaniana, uma propriedade
rural cujas origens se perdem no século IV.
Durante muito tempo considerada como uma reserva agrícola do Porto, a
freguesia de Campanhã, e mais propriamente o vale homónimo, mantém
ainda hoje muitas das marcas rurais que lhe conferiram essa imagem. Sinal disso
é a existência da maior mancha verde contínua da cidade,
onde predominam o pinheiro bravo e o carvalho roble. Apesar disso, a partir
da segunda metade do século XX assistiu-se a uma mudança profunda
no aspecto físico e humano do vale, com o desenvolvimento da indústria
e com a construção de bairros camarários para alojar pessoas
provenientes de outras zonas degradadas da cidade.
É na vizinhança de um destes bairros camarários, o do Cerco,
que situa a Escola Básica do 2º e 3º ciclos com o mesmo nome,
onde algumas turmas do 5º ano, juntamente com um grupo de docentes sob
a coordenação do professor Magalhães Pinto, desenvolveram
ao longo do ano 2000 um interessante projecto denominado "Conheço
a Minha Terra, Conheço a Europa - À Descoberta do Vale de Campanhã",
que serviu de motivo a esta reportagem e nos forneceu dados úteis sobre
a história da freguesia.
Os objectivos propostos passavam por levar os alunos a conhecer melhor a freguesia
onde habitam através do levantamento do seu património característico,
e elaborar, a partir das observações realizadas, um roteiro dos
locais a visitar. O projecto contemplou a criação de dois itinerários
pedestres, um sobre o património construído - do qual este artigo
deu a conhecer apenas uma parte -, e outro sobre o património natural,
nomeadamente aquele que respeita às linhas de água ali existentes.
Este último percurso envolveu a recolha de amostras de água dos
rios e ribeiras para posterior análise, tarefa para a qual a disciplina
de Ciências da Natureza teve um papel primordial. Os resultados obtidos
demonstraram não só a elevada poluição presente
nos rios Tinto e Torto e na ribeira de Cartes, mas também a existência
de um elevado número de coliformes fecais numa fonte de água potável.
Os resultados foram enviados para o Centro Regional de Saúde do Norte,
que, em carta enviada à escola, garantiu terem sido tomadas as devidas
providências no sentido de impedir a sua utilização. Um
exemplo prático de cidadania que dispensa as formalidades de uma disciplina
ou de uma sala de aula, mostrando ao mesmo tempo de que forma se pode trabalhar
diferentes áreas de saber num projecto comum.
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