Era uma vez uma professora que pediu um trabalho de grupo...
uma reflexão sobre a multiculturalidade dos alunos e o modo como estes se
encaixam, ou não, nos modelos de ensino monoculturais.
Enquanto professora de Sociologia da Educação, a multiculturalidade não
me é um assunto estranho, sempre considerei, no entanto, que a filtragem feita
no Ensino Básico e Secundário faria com que este problema não se pusesse ao
nível do Ensino Superior. Grande daltonismo da minha parte!
Numa das minhas turmas surgiu, entre outras formas de diversidade, uma que
por ser a mais visível e elementar me fez rodear de uma série de cuidados: o Zé
era de origem africana. Reconheço que caí na armadilha de tratar a todos
como iguais! Evitava confrontá-lo, era "tolerante" e fechava os olhos!
A Avaliação incluía um trabalho de grupo. A uma semana do prazo estipulado, o
Zé perguntou-me em que grupo estava. Perplexa expliquei-lhe que não tinha sido
eu a constituir os grupos e que, de facto, ele não estava inscrito em nenhum
dos temas. O Zé disse-me então que faria um trabalho individual. Expliquei-lhe
que tal não era possível, até porque ele não seria o único a preferir trabalhar
individualmente. "Então ponha-me no grupo X" - um grupo que tinha o trabalho
quase terminado e que ficou tão surpreendido quanto eu. Afirmei que, naquele
momento, não aceitaria a inscrição dele em qualquer grupo. Insinuou que eu
estava a ser racista e que já estava habituado a ser tratado assim naquela
escola. Acabou por ir a exame e, como não domina a Língua, a verdade é que
ainda não fez a cadeira, o que certamente atribui ao eu ser racista, uma
acusação que nunca esperei vir a carregar.
Deveria eu avaliar o Zé de forma diferente?
Talvez tenha sido demasiado inflexível! Mas quantos alunos me terão passado
pelas mãos com dificuldade em trabalhar em grupo? Seria admissível que um
aluno, por ser de outra etnia, merecesse uma avaliação especial e não
contemplada à partida? Que outras formas de diversidade (eventualmente menos
visíveis) teria eu dentro da sala de aula e que 2,5 horas de aulas não me
permitiam vislumbrar? Havia tanta diversidade e, no entanto, todos faziam um
esforço para se "encaixar" no modelo, sem dúvida monocultural que eu praticava.
Admitindo a minha quota de responsabilidade, não apenas em relação ao Zé mas a
todos aqueles que sendo diferentes eu tratei como iguais, questiono-me: como
ser intercultural na prática, quando eu própria só conheço a prática da monoculturalidade
e a filosofia da interculturalidade? Ainda para mais, com turmas
grandes, com contactos semanais breves, com esquemas de avaliação obedecendo a
critérios externos e com alunos socializados com o modelo monocultural?
Depois, colocam-se-me ainda questões que se ligam à própria função da escola.
Para que serve uma escola de formação de professores, se não para ensinar a ser
professor? A ser um professor tolerante, sensível às diferenças, capaz de
formar cidadãos abertos à diferença, capaz de mobilizar diferentes recursos
consoante as necessidades dos seus alunos..., mas também um professor capaz de
ensinar os seus alunos a mobilizar estrategicamente diferentes recursos
culturais, inclusive os da cultura dominante, que lhes permitirão o acesso a um
emprego e a serem bem sucedidos, isto é, a serem capazes de desfrutar dos seus
direitos de cidadania.
Se o Zé não domina a cultura escolar é porque a sua cultura se afasta da
cultura dominante e não deve ser penalizado por isso! Mas como poderá ele ser
professor sem dominar a cultura escolar, a única legítima e aceite por todos? A
sua cultura de origem deve ser preservada, mas enquanto professor ele deve
dominar também a cultura dominante, caso contrário é ele quem estará a ser
monocultural. Na verdade, o professor deve ser um trânsfuga intercultural,
no sentido que Ricardo Vieira lhe atribui, viabilizando formas de identidade
fragmentadas, móveis e manipuláveis, dando corpo ao sentido emancipatório da
escola.
Ainda não me consegui julgar, mas este caso tem-me feito reflectir...!
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