Em memória de Ernesto Sampaio
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Com a morte de Ernesto Sampaio (Dezembro de 2001), poeta e ensaísta, tradutor e
jornalista, desapareceu das letras portuguesas um dos espíritos surreealistas
mais fecundos e inteligentes, que sempre partilhou "a capacidade de achar que é
belo tudo o que vem de longe". Os textos que Ernesto Sampaio publicou
em jornais e revistas entre 1963 a 1987 foram reunidos em O Sal Vertido (1988),
galardoado com o "Prémio de Ensaio Prof. Jacinto do Prado Coelho", em que
reafirmou a sua evidente posição literária: a de ter sido um jornalista de
profissão, poeta e ensaísta por vocação, divulgador do movimento surrealista
português e assim se confessar a cada passo como um activo interveniente na
análise e defesa do surrealismo. Em O Sal Vertido, podemos ler textos que
incidem sobre os limites estéticos e ideológicos da corrente surrealista e
entendê-lo como reflexo vivo de um claro propósito cultural, a par da sua
própria perspectiva crítica sobre as obras de Breton e a prática da poesia, de
Jarry e a poesia como destruição, de Rimbaud e as ilusões da cultura, passando
pela análise e elogio da "escrita automática", pelas coordenadas de outras
navegações em que as barcas solares se repartem por vários aspectos da
obra de Kafka e Walter Benjamin, Julien Gracq e Mário Cesariny. E, por esse
largo mar de palavras e de ideias, apaixonadas e calorosas por parte de quem
sempre escreveu com emoção e entusiasmo, evocamos os ensaios de Ernesto Sampaio
sobre a criação de alguns espíritos superiores em quem os ventos da mudança
sopraram como fortes rajadas para a (sua) desejada revolução: "a poesia deve ser
feita por todos; não por um", ainda na relembrada divisa de Herberto
Helder. Mas na proclamação de Rimbaud de que "a Poesia deixará de bater a
compasso da acção; irá à frente", o que sobressai na visão crítica do
autor de O Sal Vertido é o mesmo propósito de se arvorar, de pena em riste, por
vezes cáustico nas setas desferidas, em defesa do espírito que perdura do
surrealismo, sobretudo no plano poético. E no modo próprio de evidenciar uma
pessoal tendência ou "política do imaginário", o autor da Antologia do Humor
Português afirmara esse singular compromisso de saber declarar que "a única lei
do escritor, para além de desenvolver ao máximo as suas possibilidades
criadoras, consiste em devolver à comunidade cultural a que pertence um idioma
diferente do que dela recebeu". E claramente se entende como um dos
textos significativos de O Sal Vertido incide na apreciação luminosa e nocturna
da poesia de Cesariny, considerando-o, com inteira justeza crítica, "como dos
raros poetas do nosso século vinte cuja leitura é capaz de mudar quem o
lê". Mas nesta hora de evocarmos aqui a memória de Ernesto Sampaio,
fica connosco a saudade e a certeza de ter sido uma voz consequente e atenta na
análise do fenómeno literário português, sem deixar de se referir os pontos de
convergência ou as balizas poéticas em que a todo o instante alinhou o seu
"discurso" poético e ensaístico, na intenção primordial de não se "desconhecer a
realidade poética nem subestimá-la".
A par do tradutor de qualidade que foi de obras de Carlo Emilio Gadda, Pieri
Paolo Pasolini, Paul Éluard ou André Breton e outros, Ernesto Sampaio partiu
para sempre, acreditamos, por não poder suportar mais a solidão em que viveu
nos últimos meses de vida. Partiu, mas ficam ainda os seus livros, ensaios e
poemas, e o confronto lúcido das ideias que sempre defendera. Em coerência e na
afirmação do seu mesmo espírito surrealista.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 11, Junho 2002
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Autoria:
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
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