Depois do término da II Guerra Mundial, que marcou definitivamente o
aparecimento de uma nova ordem mundial, o mundo era muito diferente. Dois
terços dos actuais membros da Organização das Nações Unidas (ONU) não existiam
como estados soberanos, já que os seus povos viviam ainda sob regimes
coloniais. As barreiras comerciais eram elevadas, as trocas comerciais
diminutas e exercia-se um apertado controlo sobre as transações financeiras. A
maior parte das grandes empresas operava a partir do respectivo território
nacional e produzia essencialmente para os mercados internos. O custo das
chamadas telefónicas transoceânicas era proibitivo para o cidadão médio e as
empresas recorriam a elas apenas em circunstâncias excepcionais. Acabava de
construir-se o primeiro computador do mundo, que ocupava uma sala inteira,
dotado de 18 mil tubos electrónicos e meio milhão de juntas. A ecologia era um
tema confinado ao estudo da biologia e nem na ficção científica se encontravam
referências ao ciberespaço. A população total do planeta, que atinge hoje os 6
mil milhões, era de menos de 2,5 mil milhões
Desde então, as mudanças têm ocorrido a um nível sem precedentes. As
exportações mundiais decuplicaram e crescem mais rapidamente que o Produto
Interno bruto Mundial. O investimento estrangeiro aumentou ainda mais
rapidamente e as vendas das multinacionais superam hoje o total das exportações
mundiais, por uma margem cada vez maior. As trocas de divisas aumentaram de 15
milhões de dólares diários em 1973, quando se aboliu o regime de câmbios fixos,
a mais de 1,5 mil milhões actualmente. A recente aquisição de uma empresa
multicional de telecomunicações criou uma companhia cujo valor de mercado
supera o Produto Interno Bruto de quase metade dos estados membros da ONU,
ainda que pelo seu valor seja apenas a quarta companhia a nível mundial. Hoje
em dia já é possível conversar com alguém do outro lado do mundo através de um
computador e aceder a mais de 50 milhões de páginas na internet, talvez a mais
poderosa ferramenta de informação alguma vez criada.
Mas apesar deste desenvolvimento económico e tecnológico sem precedentes, o
mundo continua dividido entre norte e sul, entre ricos e pobres, entre aqueles
que comem em abundãncia e os que morrem de fome, entre os que gozam de direitos
civis e os que são sujeitos a constantes atropelos dos direitos humanos, entre
os que têm acesso na escola a novas tecnologias e os que nem sequer possuem
material básico como cadernos e lápis. E o fosso alarga-se continuamente.
Aldeia global?
Imaginemos por momentos que o mundo é realmente uma "aldeia global", tal como a
definiu MacLuhan, e que tem cem habitantes. Que aspecto tem? E quais podem ser
considerados os seus principais problemas? Do total de habitantes, 61 são
asiáticos, 12 europeus, 13 africanos e 14 americanos, dos quais 33 professam
são cristãos e os restantes se dividem por outras religiões, das quais as mais
importantes são a muçulmana e a hindu. Uns 15 habitantes vivem numa zona
próspera da aldeia e aproximadamente 78 em bairros pobres. Cerca de 7 vivem num
bairro em transição. Os rendimentos médios de cada habitante cifram-se em cerca
de 6 mil dólares por ano e há famílias com rendimentos médios mais altos
comparativamente há alguns anos atrás. Porém, 86% da riqueza da aldeia está
concentrada nas mãos de apenas 20 pessoas, ao passo que quase metade dos
aldeãos se esforça por viver com menos de dois dólares por dia.
O número de homens é ligeiramente superior ao de mulheres, mas estas constituem
a maioria dos que vivem na pobreza. Nos últimos anos tem aumentado a
alfabetização no seio dos adultos, mas uns 22 aldeãos, dois terços dos quais
mulheres, são analfabetos. Dos 39 habitantes com menos de 20 anos, três quartos
vivem nas zonas mais pobres e procuram trabalho que, no entanto, não existe ou
é difícil de obter. Menos de 6 pessoas possui computador e apenas 3 têm acesso
à internet. Mais de metade nunca fez nem recebeu uma chamada telefónica.
A esperança de vida nos bairros prósperos é de quase 78 anos. Nas zonas mais
pobres essa fasquia desce para 64 e nos bairros de extrema pobreza a média de
vida é de 52 anos. As causas para esta diferença drástica deve-se ao facto de
nestes lugares haver uma incidência muito maior de doenças contagiosas e de
malnutrição, além de uma falta aguda de acesso a água potável, a cuidados
médicos, a saneamento, a casas condignas, a educação e a trabalho.
Nos últimos anos, esta aldeia sofreu com crescente frequência desastres
naturais relacionados com o clima, tais como fortes tempestades e mudanças
repentinas que provocam tanto inundações como secas, à medida que a temperatura
média aumenta claramente. Existem cada vez mais indícios de que o aquecimento
está relacionado com o tipo de energia utilizada, tanto nas habitações como na
indústria. As emissões de carbono, que quadraplicaram nos últimos 50 anos, são
tidas como a principal fonte de aquecimento. O nível dos lençois freáticos da
aldeia está a reduzir-se rapidamente e uma sexta parte dos seus habitantes vê
ameaçado os seus modos de vida pela erosão do solo na zona rural circundantes.
Inquérito Mundial
Quantos de nós não se questionaria quanto tempo poderia sobreviver uma aldeia
nestas condições se não se tomarem medidas para assegurar que todos os
habitantes possam viver sem passar fome, sem estar à mercê da violência, com
acesso a água potável, respirando ar puro e sabendo que os seus filhos poderão
ter verdadeiras oportunidades na vida?
Em Agosto e Outubro de 1999, a Gallup International Association, uma
organização não-governamental dinamarquesa, realizou um inquérito à escala
mundial no qual participaram 57 mil adultos de sessenta países dos seis
continentes, representando uma amostra de aproximadamente 1.25 mil milhões de
pessoas. Foi o maior inquérito conduzido à escala mundial, e nele se colocaram
questões relacionadas com a democracia e a governação, o papel das Nações
Unidas, o respeito pelos direitos humanos e a conservação do ambiente, entre
outras. Os resultados mostraram muitas semelhanças no que diz respeito à
insatisfação das pessoas relativamente à actual estrutura e funcionamento das
relações de poder. Aliás, dois terços afirmam mesmo que o seu país "não é
governado de acordo com a vontade do povo".
Um dos objectivos principais da Gallup era saber até que ponto existe uma
"consciência humana global", ou seja, até que ponto partilhamos os mesmos
valores independentemente da idade, nacionalidade ou religião. E, de facto, de
acordo com as respostas obtidas, parecemos partilhar enquanto seres humanos
alguns valores básicos, vivamos num ambiente urbano de uma moderna metrópole ou
numa área rural de um país em desenvolvimento.
Quando questionadas acerca do que consideram mais importante na vida, a maioria
(42%) respondeu ter saúde, que aparece em primeiro lugar em 37 dos 60 países, e
uma vida familiar feliz (40,1%) - classificada como de primeira importância em
16 países. No conjunto, a população de cinquenta países colocou estes dois
factores no primeiro ou segundo lugar, fazendo deles os mais destacados.
Ter um emprego aparece em terceiro lugar (23,1%), mas em países em vias de
desenvolvimento como a Argentina, Equador, Bolívia, Peru ou Camarões esta
necessidade é eleita como a mais importante. Em 23 países, esta condição
aparece em segundo lugar, caso das ex-repúblicas soviéticas e países do leste
da europa (Arménia, Polónia, Roménia, Eslováquia, Estónia, Lituânia, Ucrânia e
Rússia), ou do Chile, Colômbia, Uruguai e México
Nos escalões imediatamente abaixo aparecia o facto de se viver em liberdade
(18,4%), viver sem guerra (16,2%), viver sem violência nem corrupção (14%), ter
um bom nível de vida (12,8%) e ser devoto à religião (12,6%). Neste capítulo,
destaque para países como a Nigéria, o Gana e o Paquistão, onde este factor
aparece no topo da lista, à frente de ter saúde ou uma vida familiar feliz.
Curiosamente, ou não, apenas 11,6% das pessoas consideram que ter acesso à
educação constitui um factor importante na sua vida.
Por outro lado, se na maior parte dos países as pessoas afirmaram que as
eleições são justas e livres, cerca de dois terços dos inquiridos considera
que, apesar disso, não impera a "vontade do povo". Muita desta insatisfação
provinha inclusivamente de países com as mais antigas democracias do mundo,
como é o caso da europa ocidental, onde apenas 12% dos inquiridos acredita que
a acção dos políticos reflecte a vontade da população. A Noruega é a única
excepção a este quadro pessimista, já que perto de 70% da população acredita
que a sua vontade é respeitada pelos políticos.
Estes e outros dados serão mais detalhadamente explorados no próximo número de
A Página, para o qual nos basearemos em estudos conduzidos tanto pela Gallup
International como pelas Nações Unidas, através dos quais se procurará dar uma
visão mais ampla dos problemas que afectam este mundo e das propostas
existentes no sentido de os tentar colmatar. Para isso, continuaremos também a
contar com depoimentos de investigadores, professores, políticos, organizações
não governamentais, jornalistas, entre outros, à semelhança do que acontece
nesta edição com Alexandre Quintanilha, Boaventura de Sousa Santos e João
Teixeira Lopes.
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Que questões o preocupam mais neste início de século?
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Que propostas lhe parecem mais adequadas para resolver as questões que
referiu acima?
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Num recente inquérito à escala mundial, promovido pela Gallup
International, dois terços dos inquiridos refere que o seu país "não é
governado de acordo com a vontade do povo" e mostra-se de modo geral
insatisfeita com a qualidade das democracias. Neste contexto, considera
importante reforçar o papel da sociedade civil e dos movimentos sociais na
construção de novos caminhos para o mundo?
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O regresso, em força, do capitalismo selvagem, qual besta à solta sem freio. As
preocupantes tendências de desregulação social, a par da temível ideologia, que
se propaga com o furor dos seus incendiários arautos, de um mundo dividido em
vencedores e vencidos natos e inatos. A deriva securitária assente na premissa
de que "o inferno são os outros".
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Uma nova coordenação entre os movimentos sociais emergentes e difusos,
actuantes a várias escalas territoriais com crescente efervescência mas sem,
ainda, um programa mínimo. Mais urgente, todavia, é o retomar do controle
político sobre as forças do mercado e os poderes fácticos e a defesa de uma
Europa e de um mundo cosmopolitas, não etnocêntricos e socialmente fraternos.
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Sem dúvida, em particular na sociedade portuguesa onde não existe,
verdadeiramente, uma esfera pública. Trata-se, afinal, da consciencialização de
que o princípio iluminista da soberania popular é hoje uma ficção - uma espécie
de narrativa de encantar com que gostamos de adormecer tranquilamente...
João Teixeira Lopes
Deputado
Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
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Sinto uma particular preocupação pela exclusão social - que está a aumentar
exponencialmente no mundo -, pela questão ecológica - porque esta exclusão
social tem reflexos evidentes na crescente degradação ambiental - e pela
ascenção do militarismo - resultante do colapso de todos os frágeis
instrumentos de direito internacional que se vinham construindo desde a II
Guerra Mundial pelos chamados "regimes internacionais" - por vezes danosos para
os países periféricos ou semi-periféricos -, que neste momento estão a ser
postos em causa. Nomeadamente no domínio ambiental (pela recusa dos Estados
Unidos em assinar o protocolo de Quioto, por exemplo) ou da justiça
internacional, como é o caso do Tribunal Penal Internacional, também ele
recusado por aquele país, que temerá eventualmente que algum dos seus políticos
ou militares pudessem ser arguidos nesse tribunal.
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O slogan do Fórum Social Mundial, no qual se refere que outro mundo é possível,
ou a formulação do sub-comandante Marcos, do Exército Zapatista de Libertação
Nacional - talvez mais correcta - de que há outros mundos no mundo, servem de
alguma maneira para mostrar que é aqui que tem de se construir outro mundo,
actualmente marginalizado, silenciado, suprimido. E essa possibilidade advém de
iniciativas como as de Porto Alegre, que representa a procura de uma
globalização contra-hegemónica. Penso que é aí que se poderão ir buscar as
energias para fazer uma vinculação entre as lutas locais, nacionais e globais
em prol dessa outra forma de globalização.
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A mudança tem de ser feita com base na reivindicação e na apresentação de
propostas. E foi uma mensagem positiva e de proposta aquela que saiu do Forum
Social Mundial, seja nos domínios da educação, da saúde, da segurança, da
ecologia, dos mercados financeiros, das agências internacionais, dos direitos
dos povos indígenas, entre outros. E esta iniciativa parte da sociedade civil e
dos movimentos sociais; uma sociedade civil estranha, "incivil", que tem
estado fora do contrato social, que se unindo, trabalhando, através de acções
que devem ser fortes e não violentas, não necessariamente legais - porque a
legalidade é por vezes mascarada de tal forma que desarma os movimentos sociais
-, mas que através da acção directa possam fazer reivindicar as suas agendas e
fazer com que da contestação saiam propostas que resultem em alterações
políticas.
Boaventura de Sousa Santos
Sociólogo
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
*Depoimento retirado de entrevista
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Os riscos associados a um desenvolvimento insustentável do planeta, assim como
às desigualdades crescentes entre os que consomem cada vez mais e os que mal
conseguem sobreviver. Também o crescente fundamentalismo político e religioso.
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No que diz respeito à sustentabilidade, são duas as propostas: uma
estabilização rápida da população a nível mundial e uma aposta agressiva na
conservação dos recursos (energia, água, diversidade biológica, eficiência e
reciclagem). No que diz respeito às desigualdades, uma política fiscal mais
equilibrada, que incentive os projectos que estimulem o equilíbrio (a nível
local, regional, nacional e internacional), e que transfira os impostos do
rendimento para o consumo. Os fundamentalismos só serão enfraquecidos com uma
forte defesa dos valores da democracia, da tolerância e da curiosidade pelo
"outro". Já existem por esse mundo fora, felizmente, muitos exemplos de sucesso
nestes domínios.
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"Think globally, act locally!" (Pensa globalmente, mas age localmente!). Frase
já muito usada, que descreve de forma clara o que eu penso sobre o assunto. A
sociedade civil somos nós todos, e não vale a pena defender grandes ideais, se
não actuarmos consistentemente. Mas nada substitui a educação. Sem informação,
o nosso leque de escolhas será sempre muito limitado. Muitos dos sucessos a que
me referi, passaram pelo conhecimento de alternativas e de experiências
inovadoras que se têm realizado, assim como de uma atitude mais centrada no
pragmatismo e não nas certezas absolutas. E é neste contexto que os
establecimentos de ensino, os movimentos sociais e os meios de comunicação
podem e devem ter um papel fundamental.
Alexandre Quintanilha
Investigador
Professor no Instituto de Biologia Molecular e Celular
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