Espírito intelectual dos maiores do Portugal
quinhentista, a par de muitas outras qualidades de cronista e prosador da sua
época, Damião de Góis incarna ainda hoje o sentido mais profundo de ter sido
um dos grandes humanistas do século dezasseis, cuja vida foi longa e pesados
os fardos que teve de suportar até à sua morte de todo não esclarecida, depois
de ter penado e sofrido todos os horrores inquisitivos do Tribunal do Santo
Ofício.
Ao longo dos tempos, muitos têm sido os estudiosos da obra de Damião de Góis, não apenas no plano biográfico, mas sobretudo pela importância das suas crónicas e ainda pelo sentido humanista e teológico que sempre revelou, no conhecimento das obras dos grandes da época, e pela troca de amizades e convívios com os senhores do Mundo numa época em que Portugal dava cartas e entrava em todos os negócios. Daí a importância pessoal desempenhada por Damião de Góis nas terras da Flandres no hábil e persistente entendimento de saber tratar das coisas e questões dos reinados de dom João segundo e terceiro ao longo de mais de vinte anos e isso o ter obrigado a viajar pela Europa e pelo Mundo na confirmação dos seus valores humanistas.
Educado desde tenra idade na corte de dom Manuel primeiro
(e deste felicíssimo monarca haveria de escrever uma excelente e ainda hoje
das mais admiráveis crónicas biográficas e históricas), Damião de Góis cedo
revelou a sua vocação para as artes e letras, ao mesmo tempo que não deixou
de acompanhar as revoluções teológicas e religiosas da época, no conhecimento
pessoal de Erasmo e de Calvino, ou na amizade que permaneceu até ao fim dos
seus dias com Clenardo e André de Resende, Pietro Bembo ou Gomes Eanes de Zurara.
Mas falar ou evocar ainda Damião de Góis na passagem dos 500 anos do seu nascimento
é ter sempre presente o exemplo maior da sua obra, o sentido criador das suas
crónicas, o papel humanista que soube cumprir em todas as circunstâncias, e
sobretudo não deixar de pensar na morte que ocorreu de forma estranha, quando
se deslocava para Alenquer, vindo do mosteiro da Batalha, onde estava a ferros
sob as ordens da Santa Inquisição. Morte natural ou assassínio? Ainda hoje se
não sabe, mas sabemos que morreu triste e envergonhado depois de ser um dos
homens mais poderosos e influentes do reino e nas várias referências culturais
que encontramos no seu caminho confirmar que por aí se desvendam alguns dos
aspectos singulares da vida e obra deste grande espírito intelectual do Renascimento
português, enaltecendo os passos da sua tormentosa via-sacra e saber como partiu
desta vida pelo cerimonial do fogo em anos que ainda são de triste memória.
Esperamos, pois, que 2002 seja um ano de singular evocação de Damião de Góis,
cujo destino amargo e trágico quase em finais do século
dezasseis tem sido relembrado em páginas de várias obras de ficção e de ensaio,
que por serem exaustivas não vale a pena agora referi-las. Mas prometemos voltar
a falar do autor de Descrição da Cidade de Lisboa num dos próximos números
de "A Página".
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