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Carta aos professores

A menos de um mês de me jubilar, decidi escrever esta carta dirigida a todos os que exercem a complexa função de ensinar.
De facto, posso hoje concluir que de todas as actividades que exerço, ser professor tem sido a que mais condiciona a minha responsabilidade como cidadão pelas implicações inerentes à formação de um número incontrolável de jovens.
Ser professor é contribuir de forma decisiva para a construção do futuro de gerações de pessoas pelos valores, conhecimentos e comportamentos que transmite permanentemente.
Se o processo educativo se inicia a partir do momento do nascimento, ou talvez antes, os alunos chegam ao sistema escolar já dotados de um padrão comportamental consequente da história de vida vivida até então. É que, as aquisições de saberes, atitudes e de escalas de opções inicia-se na família e na comunidade a que as crianças pertencem, pelo que os professores das classes iniciais da formação escolar confrontam-se com a dificuldade de promover acções educativas modeladoras do perfil psicossocial de cada aluno.
Trata-se de uma tarefa aliciante mas cada vez mais difícil dado que o papel educativo da família sofre hoje transformações muito profundas pela mudança radical da participação dos diversos actores familiares na construção da personalidade dos filhos.
São vários os estudos desta circunstância que nos mostram aumentar o número de famílias indiferentes e passivas no desenrolar da estruturação do carácter das crianças, sendo que, a partir dos quatro anos, é fundamental que estejam adquiridos os conceitos de verdade e mentira, de bem e de mal, de colaboração e de egoísmo, de disciplina e de anarquia, de prémio e de castigo.
O desenvolvimento da relação da sociedade e da escola a todos os níveis é um dos mais decisivos componentes da transformação inevitável perante os novos desafios.
As novas tecnologias de ensino/ aprendizagem condicionam uma alteração profunda na relação do professor com os alunos, mas não a substitui.
De facto, a aquisição de conhecimento novo faz-se, nos nossos dias, de forma acelerada e em tempo mínimo. A capacidade de instruir está mais facilitada, pelo que a figura do docente se assemelha à do tutor que acompanha os progressos aquisitivos do aluno. Ao contrário, a capacidade de educar complica-se perante a diversidade de padrões de vida que caracterizam as sociedades modernas.
Ensinar, particularmente adolescentes e jovens adultos, é cada vez mais um acto de compreensão, respeito e avaliação das diferenças e dos diferentes. Tal circunstância implica, da parte do professor, uma grande coerência no discurso e nos actos, uma dedicação incontestável à actividade profissional, um comportamento de rigor, verdade e transparência como cidadão, porque o ensino faz-se mais pelo exemplo do que pela palavra.
Estas exigências não são reconhecidas pelos arranjos administrativos e burocráticos de todos os tipos, quando se avaliam as condições sócio políticas que estruturam os sistemas educativos dos diversos países de todas as latitudes.
Na realidade, as condições salariais, promocionais e de intervenção social com êxito, são menores do que a de outros tipos de profissionais e de outras classes sociais.
Esta verificação é curiosa se pensarmos o papel fundamental do professor e do sistema escolar para a aquisição da competência que os restantes sectores necessitam.
Por isso, sempre que há crises sectoriais nos países e nas federações nacionais, os responsáveis acusam as escolas de não estarem a realizar um ensino sintonizado com as necessidades do sector em crise. Esta acusação é o reconhecimento da importância na formação e na transformação da actividade produtiva dos países , que o sector educativo representa. Se assim é, os professores de todos os graus de ensino devem ser considerados de forma especial e mais justa, no que se refere aos direitos e deveres de cidadania, aos aspectos relacionados com a actualização do conhecimento e à estabilidade salarial e económica que permita um compromisso absoluto com a actividade pedagógica.
Sabemos que não tem sido essa a orientação dos governos dos diversos países do mundo, ainda que todos reconheçam o papel decisivo da educação no progresso e na paz.
No termo legal da minha carreira de docente, escrevo esta carta a todos e a cada um dos professores portugueses, para afirmar a minha convicção de ser necessário que se defenda a dignidade das funções docentes de todos os tipos para a construção de uma sociedade mais justa e mais livre, pois como escreveu Thomas Jefferson não há, não houve e não haverá países ignorantes e livres.
Mas, a ignorância tem aspectos que ultrapassam a mera capacidade de adquirir conhecimentos científicos e técnicos e que traduzem a consciência da verdadeira liberdade responsável.
Aos professores cabe a responsabilidade de fazer homens livres e cidadãos participantes. Esta função é um dever mas também é um direito.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

Nuno Grande
Professor Catedrático do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Univ. do Porto. Pró-Reitor p/ass. sociais da Universidade do Porto.
Nuno Grande
Professor Catedrático do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Univ. do Porto. Pró-Reitor p/ass. sociais da Universidade do Porto.

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