"Quando eu era pequeno... E mergulho fundo na minha infância.
A infância, esse grande território de onde todos saímos ! Pois donde sou eu
? Sou da minha infância. Sou da minha infância como se é de um país...", escrevia
Saint-Exupéry numa das suas obras: O Piloto de Guerra. Todos, realmente, comprovamos
isto diariamente. O nosso mundo interior está povoado de imagens e recordações,
muitas vezes nebulosas, que têm origem nos anos da nossa juventude. Em muitas
ocasiões, temos, até, de recuar a essas épocas da nossa vida para compreendermos
certas atitudes, hábitos, reacções, gostos, que fazem parte da nossa maneira
de existir.
Basta pensarmos em como nos sentimos tão estranhamente mergulhados
em magia se, por acaso, depois de muito tempo de ausência, revisitamos lugares,
ou encontramos pessoas, ou relemos livros que fizeram parte dos nossos verdes
anos.
Como miúdos que éramos, brincávamos, sonhávamos, amávamos
a aventura e entusiasmávamo-nos com feitos grandiosos. E, inevitavelmente, agarrávamo-nos
aos heróis dos livros e dos filmes e das histórias que nos contavam. Esses heróis,
juntamente com os comportamentos que porventura observámos naqueles que então
nos rodeavam, ajudaram a construir a nossa personalidade. Para o bem ou para
o mal. De alguma maneira, temos tendência a identificarmo-nos com os heróis
(ou principais personagens, ainda que não sejam muito heróicas) das narrativas
e da vida. E fazemos de algo deles substância nossa.
Somos da nossa infância - de uma infância habitada por essas
personagens - e não podemos fugir a isso. O nosso passado mais antigo persegue-nos
e, em parte, explica-nos. Sucede como com a árvore, que não consegue libertar-se
da sua raiz
Como são os heróis que actualmente propomos como exemplos
aos mais novos nos filmes e nos livros? São, sem dúvida nenhuma, na sua maior
parte, inadequados: personagens com muito músculo ou grande beleza, ou com muita
inteligência, ou muito bem equipadas materialmente. É muito pouco. Como exemplos,
não servem de grande ajuda na tarefa de construir um homem, que é aquilo que
se pretende com a educação.
Para enfrentar a vida, que é tão difícil, não se pode negar
que qualquer uma dessas coisas dê bastante jeito; porém, facilmente se compreende
que nenhuma delas é essencial. Nenhuma delas faz necessariamente, nem mesmo
muito frequentemente, parte das características pessoais dos seres humanos.
Nenhuma delas, além disso, é capaz de ser útil, se faltar um substrato mais
profundamente humano: aquilo de que se faz um homem: os valores humanos.
Para que servem os músculos, quando chegar a hora de haver
um cancro nesses músculos? Para que serve, sozinha, a inteligência, se ela,
como lhe compete, nos mostrar um caminho que, por não termos coragem nem força
de vontade, somos incapazes de seguir? Que é feito da beleza quando se envelhece?
Sem os valores humanos, sem as virtudes humanas, andamos pela rama. Teremos,
apenas, aparências de homens, projectos humanos inacabados, fracassos existenciais
comprováveis na hora da verdade.
Propor aos jovens que se revejam e que se identifiquem com
personagens destas é estar a enganá-los. É, além disso, escrever na água. É
assim como tratar de enfeitar o que não existe: pregar um belo quadro numa parede
que não tem estuque nem tijolos. Para haver uma rosa é preciso haver antes uma
roseira; para haver um homem feliz é preciso haver, antes, um homem.
Precisam os jovens - e precisamos nós - de mais qualquer coisa:
de exemplos de valentia, de honradez, de lealdade; precisam - precisamos - de
ver noutras pessoas (também nas personagens das histórias) exemplos vivos de
como podem e devem ser encarados a vida, o trabalho, o amor e a morte.
Existiram livros e filmes que cumpriam esse papel, mas agora
não estamos bem servidos. Conheço pais que guardaram cuidadosamente, durante
muitos anos, os livros da sua juventude e, chegada a altura, os entregam aos
filhos, entretanto já suficientemente crescidos, como quem entrega um tesouro;
conheço educadores que periodicamente visitam alfarrabistas em busca de um género
de livros que já não podem ser encontrados noutros mercados mais acessíveis
Quem me dera que as pessoas que têm responsabilidades neste
campo entendessem melhor como são grandes, e graves, essas responsabilidades!
Se a literatura juvenil e os filmes descerem o seu nível, farão, inevitavelmente,
descer o nível dos homens do futuro. Publicar coisas para entreter os jovens,
ou para fornecer informação, é bom. Mas não é suficientemente bom
Está alguém comigo?
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