Na releitura de Um Homem Parado no Inverno (1991), que aparece agora
em 5ª.edição, torna-se inevitável relembrar que, como leitores de outros livros
de Baptista-Bastos, sabemos desse espírito de revolta e da sua denunciadora
intenção desde as páginas de "O Secreto Adeus" (1963), passados alguns anos
de outras experiências e queixumes, na formação de uma personalidade e no desencanto
das suas próprias vivências até hoje pelo mesmo e inalterável trajecto literário.
Assim, se "Elegia para um Caixão Vazio" (1984), de que falaremos num dos próximos
números de "A Página", é uma narrativa de um tempo de solidão e desencanto,
de amor e desamor, de coragem e cobardia, de luta e talvez de cansaço, por ser
bem difícil suportar um quotidiano que pesa e quase rouba todas as forças para
enveredar por outros caminhos, e se "A Colina de Cristal" (1987) se revela,
sobretudo, como uma forma de reinvenção dos lugares de espanto e de história,
onde ganha sentido e força esse "espírito" dos lugares, não como atitude lírica
ou sentimental, e antes como forma de reinventar o "tempo certo" para assim
entender o que nas páginas finais desse romance claramente se denuncia, ou seja,
uma metafórica "colina de cristal" que foi palco de outros combates e desfiles
militares, tão perto de Belém onde o poder (e outros poderes) se decide, a verdade
é que face a este livro, amargamente intitulado "Um Homem Parado no Inverno",
nos atinge uma certa perplexidade não apenas pelo tom desencantado e solitário,
mas sobretudo porque Manuel se apresenta como personagem distante, figura passadista,
amargurada e desencantada no mais fundo de si, mas também porque os seus dissabores
ou desilusões se perdem pelos fios de uma memória em que as palavras e actos,
memórias e factos, nos reafirmam (ainda) uma certa expressividade contingente
da própria História - ontem e hoje, claro.
Na estrutura narrativa deste romance, desejando sobrepor os planos da própria
intriga, Baptista-Bastos acaba por construir um livro com uma linguagem marcadamente
barroca, difícil, propositadamente embrulhada nas sombras e vozes que deseja
"reavivar" ou através delas fazer o seu juízo do tempo, dos homens e da história
vivida. Não se trata de um canto desiludido pelo "tempo europeu" sentido neste
espaço extremo-ocidental, mas de um amargo "ajuste de contas" com a própria
consciência: não a de Baptista-Bastos, mas a do seu personagem Manuel, que neste
romance parece fazer o trajecto queirosiano de Jacinto de "A Cidade e as Serras",
embora com outras profundas e desencontradas razões pessoais.
Se este "inverno" (miticamente sonhado pelo Autor) "vai ser longo e áspero",
como conclui na última página, e o protagonista, desenfadado da vida e dos homens,
"terá muito tempo para recordar" ou invocar a sua própria vida, também é certo
que depois de um demorado inverno, frio e chuvoso, catastrófico ou ciclónico,
nem tudo é varrido pela força dos elementos - e a um inverno penumbroso uma
primavera há-de renascer, na melodia redescoberta da música de Vivaldi de outras
lembranças. Não para cantar outros "amanhãs", mas para fazer ressurgir a esperança
em dias melhores e na certeza sabida de que o mundo não pára, os homens parados
no inverno só existem no forçado "imaginário" de quem acredita que o mundo acaba
perto da janela quando o sol deixa de a iluminar.
No entusiasmo de uma certa "paixão" que vem de outros livros, Baptista-Bastos
redescobriu, pelas páginas deste romance, um "itinerário" de solidão e desencanto,
que torna difícil entender o pessimismo que perpassa ao longo de todo o livro.
Mas o que pessoalmente mais nos surpreende é a "troca" ou a "recusa" de nesse
comovente e sincero percurso feito por Manuel, nos altos e baixos das suas recordações
e experiências, não haver lugar para reinventar a realidade nos limites de outros
sonhos ou na ilusão ainda de uma certa inocência que de todo se não pode perder.
Não para entender o "passado" em cores azuladas ou rosas, mas para se compreender
que a generosidade patente noutros livros (ou o combate enaltecido por diferentes
valores humanos) se não pode pôr de lado de um instante para o outro, só porque
caiu o muro de Berlim ou o império dos czares se "ressuscita" por outras águas
turvas que hão-de correr em avalanche por debaixo da muitas pontes. Mas o tempo
dirá ou falará por si. Ou já falou, quem sabe.
E daí que pensar-se na leitura deste "Homem Parado no Inverno" como "alegoria"
ou "manifesto" de desencanto por valores que ruíram ou estão em saldo, não seja
razão para se não entender o sentido profundo deste romance de Baptista-Bastos.
No entanto, porque é excessivamente evidente a "intenção" nos passos e andanças
da personagem principal, mesmo nos subentendidos de outras referências ou anotações
narrativas que se descobrem na própria leitura, o que mais nos surpreende é
essa "perda" de sentido ou de orientação, como se o mundo tivesse acabado e
os homens não pudessem alimentar outros sonhos. Amarga e pesada a visão deste
romance, não podemos deixar de lembrar, um pouco em memória de Vailland, tão
do agrado do autor de "Cão Velho Entre Flores", que um "homem só" não faz a
revolução, mas pode (e deve) ajudar. Sempre foi assim - ontem e amanhã, claro.
E o mundo avança noutro sentido, neste limiar de um século XXI que será talvez
mais humanista sob vários aspectos da evolução da Humanidade, mesmo com os fracassos
e quedas de todas as utopias, mesmo com todo o cortejo de novos salvadores ou
arautos que, afinal, "cantam outros amanhãs".
Por isso, na esperança desesperada da personagem que se ergue nas páginas de
"Um Homem Parado no Inverno" e nos faz conhecer o que não podemos aceitar, é
esse sentido subjacente que se adivinha ser a forma e o fundo dessa intenção
tão claramente pessimista: a de que depois do ruir de todas as ideologias nem
o dilúvio nos salvará. E não é verdade. Outros valores se hão-de impor para
que o homem alcance a sua salvação e redenção última, mesmo com todos os "terrorismos"
islâmicos e outros, porque a Humanidade sempre avançou para lá de todas as barbáries
cometidas no correr dos séculos. E os ventos infames dos dias hoje vividos hão-de
serenar e o mundo avançará, como acredita Manuel, mesmo que o inverno seja longo
e áspero.
Serafim Ferreira / crítico literário
BAPTISTA-BASTOS
UM HOMEM PARADO NO INVERNO
Ed. ASA / Porto, 2001.
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