Neste ano em que o Porto é capital da cultura, a par de algumas edições
de carácter antológico no domínio da prosa de ficção ou da poesia, não conhecemos
outra obra de qualidade literária como é este romance de Pedro Baptista (nascido
no Porto em 1948 e professor do ensino secundário), não só pelo propósito narrativo
subjacente - a forma de redescobrir a Cidade Invicta nos anos 60 pelas vozes
e memória de jovens adolescentes à procura do seu lugar ao sol -, mas sobretudo
pelo enquadramento social e cultural que é evocado.
Trata-se de um romance escrito a voo de pássaro, por vezes um tanto irregular
na escrita ou surrealizante nos contornos descritos (como a história da degolação
do "cavaleiro azul" na altura da inauguração da estátua de dom João VI no Castelo
do Queijo, com a presença inevitável de sua excelência o almirante Américo Deus
Nos Livre Tomás). Mas todo o encadeamento romanesco, centrado num grupo de jovens
de vinte anos ou menos, que fazem o périplo pela cidade e se reunem no Bar do
Molhe ou nos cafés de muitas memórias como o Diu, o Palladium, o Majestic ou
o de São Lázaro, com bilhares no primeiro andar e muito frequentado nesses tempos
pela "malta" de Belas-Artes, na recorrência memorialista de pessoas e lugares,
se desdobra no contraponto de intenções literárias e políticas em anos de pura
rebeldia ou afirmação de outros valores. E daí que as leituras recorrentes nos
falem ainda de Sartre, Camus ou Lefebvre, da Revolução Cubana ou do Vietname,
ou se afirmem em protestos pela cidade nas pinchagens contra a guerra colonial.
Pode dizer-se que Pedro Baptista, numa espécie de jogo catártico, recorre à
memória para evocar histórias de um Porto bem sentido (mesmo quando fala de
futebol e da lembrança de treinadores e jogadores que passaram pelo "glorioso"
das Antas ou dos lugares de peregrinação quase obrigatória, como a Foz Velha,
Passeio Alegre, Sobreiras ou a Baixa e as paragens no Jardim de São Lázaro)
e nas páginas do romance recuperar os sinais de histórias cruzadas de outras
histórias, nos tiques e manias de figuras ou personagens que aparecem e logo
desaparecem, ou mesmo na evocação de gentes judaicas que fugiram do holocausto
nazi e no Porto encontraram abrigo certo e seguro, mas é na história amorosa
entre Romy e Alex que todo o livro ganha uma dimensão literária e poética digna
de registo. A sua "aventura" ou mesmo a redescoberta de outros valores em oposição
a uma educação marcada de muitas prepotências ou de enganos, alcança contornos
expressivos que se radicam num espírito de libertação ou de rebeldia que definiu
bem esses idos anos sessenta. E a lembrança de gentes, lugares e figuras, as
várias referências literárias que surgem a cada passo no romance, servem tão-só
para dizer ou relembrar que o Porto desses anos 60 (ou mais concretamente 1966
e 1967) teve os seus avatares que aqui surgem nos seus próprios nomes, como
Óscar Lopes, Pedro Homem de Mello ou Eugénio de Andrade e mais não fazem do
que retomar essa outra herança literária que vem de António Nobre ou Raul Brandão.
Por isso, O Cavaleiro Azul se impõe como uma clara afirmação ficcionista
literariamente mais conseguida do que Sporá (1993), mas é ao mesmo tempo
o modo próprio e singular de Pedro Baptista recuperar esse "tempo perdido" pelos
caminhos da memória, pelos lugares em que viveu e cresceu, mas saber fazer isso
em páginas de acentuada desenvoltura literária e uma certa crueza de linguagem
mais evidente nas descrições sensuais e eróticas. Assim, remediados certos desleixos
de uma escrita por vezes se revela apressada, acreditamos que o autor deste
romance se confirmará como uma das vozes ficcionistas a ter em conta neste Porto
sempre de grandes referências poéticas e literárias.
Saudamo, pois, com vivo entusiasmo este livro de Pedro Baptista e ficamos à
espera de novos trabalhos de ficção que em nada desmereçam a atenção com que
Cavaleiro Azul nos interessou.
Pedro Baptista
O CAVALEIRO AZUL
Ed. Campo das Letras / Porto, 2001.
Serafim Ferreira
crítico literário
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