Poeta do amor e da fulguração, dos afectos e dos silêncios, António
Osório tem feito o seu caminho desde A Raiz Afectuosa (1972) por entre
outros caminhos, na soma de muitos livros e na coerência de um discurso poético
que depressa se singularizou na poesia portuguesa dos últimos trinta anos, e
faz da sua condição de poeta um dos mais profícuos criadores, em que a palavra
silenciada ou subversiva se impõe no modo de se afirmar e ser um profundo conhecedor
de outros poetas, na leitura de muitas leituras e nas referências que são abundantes
na sua poética, sem deixarem de povoar o seu universo pelas diferentes leituras
de Goethe, Montale, Pound, Ungaretti, Rilke ou Pavese. Mas sempre na insistência
de haver um "lugar do amor" que se reabilita ou redescobre:
Matriz
de remos caminhando;
terreiro de buscas,
manipulações;
cela
onde não há desespero:
o lugar do amor.
É verdade que até hoje a aventura poética de António Osório não conheceu limites
e se consolidou numa teia feita de muitos poemas ou textos de fixação do quotidiano
e reinvenção exemplar de um "bestiário" ou "planetário", por saber encher de
palavras as folhas brancas e não só para construir um espaço físico e espiritual
bem próprio, por entre montes e montes de papéis, desenhos e livros, na aparente
desordem da sua mesa de trabalho, mas sobretudo para conformar por outras veredas
de sonhos e inquietações essa "décima aurora" que tem sido o desafio de todas
as horas em tantos anos de ofício de poeta ou em busca de outras inquirições
talvez de memória borgiana:
Pergunto porque escrevo
versos, que crueldade
ou insânia comigo tenho
e lego, envergonhado
por má, despudorada acção.
Mas, na aparência de ser um Quixote de outras utopias, no silêncio da casa
e sempre às voltas com os seus fantasmas ou deuses de outras galáxias, numa
propositada construção do tempo e espaço, a poética de António Osório afirmou-se
na fulguração de muitas ilusões ou desejo de saber sempre que a gratidão nem
sabe a quem deve ser grata:
E por estar na terra
uma só vez, ao sol,
nada pedindo, nenhum segredo,
como um velho lobo-do-mar.
Sabemos que o seu caminho poético tem sido percorrido no fio dos versos,
porque António Osório sabe do que fala e do que canta, do que lamenta e de si
mesmo se lamenta, tanto nos poemas como nas prosas poéticas ou nas suas "crónicas
da fortuna", longos e demorados têm sido os anos nesse profundo sentimento do
mundo que se entrelaça numa dupla teia e nesse percurso sinuoso, vibrátil, solar
ou nocturno, em forma de melancolia que não pede licença para se impor e ser
a exacta medida de todos os conflitos ou desamores ou como uma "felicidade de
pintura", na evocação de pintores marcados por outros destinos: Goya, Greco,
Chagall, Vermeer, Modigliani ou Cranach. E sempre clamar em nome de outros fuzilados:
Não apenas os de Goya,
estes que diariamente de olhos vendados
à morte, pela última vez, contemplam.
A par e passo, a arte poética de António Osório se confunde assim com a sua
própria existência real, por entre dificuldades e conotações de diferente origem
poética, num saber de experiência feito ou na consciência plena, como afirma
na "entrevista apócrifa" que fecha esta edição, de que a publicação sem pressa
do seu primeiro livro (A Raiz Afectuosa em 1972) faz lembrar de facto
a imagem de um "trapezista incapaz de voar sem alguma segurança, porque se
falha a sua passagem, paga-a ele e a trupe". Portanto, António Osório quando
publicara o seu primeiro livro sabia que havia um lugar para ocupar, porque
a sua poesia é definidora de outras matrizes e feita de ideias e sentimentos
muito pessoais, numa forma de geografia poética percorrida em linha contínua,
coerente e consequente, sem embaraços, firme e segura do muito que tem para
dizer e cantar. Portanto, não é de estranhar a quase unanimidade crítica em
seu redor, na valorização de um trajecto ou afirmação singular na poesia portuguesa
destes últimos anos. Por isso, dizemos com Eduardo Lourenço, em forma de definição
global, que na "sobriedade elíptica" da poesia de António Osório existe "qualquer
coisa que a assimila à poética gnómica e ao epitáfio, sabedorias enigmáticas
e claras na sua voluntária obscuridade". Ou ainda na lúcida observação de
Joaquim Manuel Magalhães lembrar, por ser uma "arte mendicante", que a poesia
do autor de A Ignorância da Morte (1978) é "esse melancólico revestimento
a palavras da exaltação e dor de ter de existir, de persistir em existir, de
buscar tecer um refúgio fraterno no cerco de abandono da nossa civilização de
ruínas".
Vale a pena, pois, conhecer a poesia de António Osório e sobretudo reler
estes dois livros agora reeditados num único volume e com uma importante bibliografia
activa e passiva para os leitores e estudiosos que melhor a quiserem entender.
António Osório
O LUGAR DO AMOR e DÉCIMA AURORA
Ed. Gótica / Lisboa, 2001.
Serafim Ferreira
critico literário
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