Desde Natureza Morta Iluminada (1968) ou No País das Lágrimas
(1972) que o trajecto literário de José Viale Moutinho se divide entre a prosa
de ficção e a poesia, entre a entrevista, a crónica e a reportagem jornalística,
na confirmada capacidade da sua vocação de escritor. Mas, como noutros casos
entre nós conhecidos, também no autor de O Jogo do Sério (1973) se observam
os "vícios" de a actividade (ou a "prosa") do jornalista tantas vezes se poder
confundir com a do escritor, ainda no sentido e lição de Roland Barthes, nos
limites e diferenças que existem entre o "escritor" e o "escrevente". Mas as
águas por onde escorrem as suas histórias ou ficções, a princípio marcadas por
um clima fantástico ou surrealizante e hoje mais ligadas de perto ao húmus vivencial
da nossa realidade social e humana, desaguam noutras nascentes ou avançam na
direcção de outros mares nem sempre muito encapelados, mas justos e verdadeiros
nos traços como nos surgem descritas e narradas.
Digamos, pois, que de livro a livro a "escrita" de Viale Moutinho ganha outros
matizes e se torna mais linear e poética no propósito de transfigurar ou reabilitar
os lugares e as gentes que se tornam vivas e reais nas histórias que nos sabe
contar, como acontece, por exemplo, em Romanceiro da Terra Morta (1988),
um conjunto de histórias cruzadas de pessoas e terras que permanecem no horizonte
de um "imaginário" colectivo, quase parado no tempo ou onde o tempo chega e
se impõe matizado por outros ritmos e desejos. No fundo, trata-se de fixar esse
"cosmos" humano e existencial de os problemas imediatos da própria sobrevivência
se entenderem nos limites estreitos de uma vida sem chama nem horizonte, onde
tudo se observa como se fosse uma estranha condenação dos deuses ou falta de
vontade própria dos homens. E esse declarado acto de denúncia da realidade em
terra de servos e de cervos, "terra morta" de gente viva, uns que cantam e falam,
outros que partiram e para sempre silenciaram os seus protestos contra a vida,
se descobre nas páginas dos seus livros e na prosa ágil e envolvente e irónica
de José Viale Moutinho, na verdade de alguns "casos" humanos que se erguem como
exemplos de existência difícil e austera, sem mais perspectivas, ou se revelam
como formas marcadas de indiferença, perfídia, ignomínia ou frustração por nada
valer a pena e tudo estar dependente de outra vontade (política ou geográfica,
pessoal ou interesseira, literária ou cultural) sob os olhares de qualquer regedor
ou cabo de ordens no tempo da "outra senhora", como é de novo evidente em algumas
das histórias deste livro que acaba de ser premiado. Porque é verdade que todas
as histórias de Viale Moutinho se ligam de perto e por dentro a esse passado
recente que fez mergulhar as pessoas numa imensa escuridão, entre promessas
(2) que se não cumpriram, guerras que se fizeram e de que existe ainda uma clara
memória nos corpos desfigurados ou mutilados, terras que não abandonaram os
seus sinais de atraso ou gentes que nunca tiveram outros sonhos.
Na forma de oralidade que utiliza, a "escrita" de Viale Moutinho, directa e
objectiva, descrevendo por vezes com excessivos pormenores o que se adivinha
logo nas primeiras linhas, prolonga por outros caminhos de entendimento esse
"fabulário" colectivo de haver gentes, lugares e histórias que, contando ou
falando dos seus problemas e inquietações, protestos e raivas caladas, se levantam
diante dos nossos olhos com um secreto sentimento de culpa por não poder ser
outro o seu destino. Mas não há qualquer espécie de condenação: com o temperamento
e a índole de escritor que também é jornalista, ganha outros retoques a "imagem"
que descreve ou o "quadro" que evoca, e esse mesmo olhar se confunde na fixação
imediata de contar sempre o que observa e se desdobra em planos cruzados de
outras memórias, como na admirável história"Apenas uma Estátua Equestre na Praça
da Liberdade", onde propositadamente se vê e revê o que é de hoje e foi de ontem,
nos sinais repetidos das mesmas manifestações e protestos, alegrias e fugas,
exaltação e entusiasmo. E é nesse plano simbólico e narrativo de saber fixar
as pessoas e os lugares que se afirma, sem dúvida, como um excelente narrador.
Mas o trajecto pessoal do autor de Pavana por Isabella de França (1990),
na intenção literária de denunciar certas situações, no apelo que faz a uma
ambiência social e humana ainda menos conhecida, é sobretudo pautado pelo seu
desejo de afirmação como escritor que, exprimindo-se (3) através do conto ou
da novela, configura noutros planos denunciadores uma "realidade" que, pelo
caminho da ironia e da sátira, não perde nada da sua eficácia literária nessa
quase torrencialidade de em mais de trinta anos ser autor de outros tantos livros
publicados, divididos pela prosa de ficção e pela poesia, pelo ensaio e investigação
literária, e com alguns dos seus contos já traduzidos em várias línguas.
Cronista atento que tem procurado ser deste "país de lágrimas", antes e depois
de Abril, desvendando enigmas nem sempre decifrados com a clareza de uma prosa
em si escorreita e castiça, muito na linhagem de Camilo ou de João de Araújo
Correia, mas também na intenção irónica de certas novelas e contos de Rodrigues
Miguéis, a força narrativa de Viale Moutinho patenteia-se no modo persistente
de ser um cronista de um tempo marcado por muitos fantasmas e medos vários,
denunciando assim uma realidade que, herdada do passado, se não reabilita de
todo aos olhos de quem a sabe observar com grande lucidez e atenção.
Mas nas diversas e cruzadas referências a lugares, livros e autores que habitam
a sua "casa" literária (Camilo, Nobre, Trindade Coelho, Torga, Aquilino, Antero,
Marmelo e Silva, José Gomes Ferreira e outros), se consubstancia o modo de narrar
deste escritor e jornalista galardoado com o "Prémio Literário Orlando Gonçalves",
na perspectiva pessoal de erguer um quadro aproximado e descritivo do "país
real" nos contornos e modelos que permanecem e nos ecos que se espalham pelas
páginas deste livro de ficções intitulado Cenas da Vida de um Minotauro.
É justo salientar, pois, que este ano o Prémio consagra ao mesmo tempo o competente
e combatente jornalista que sempre foi Orlando Gonçalves e (4) a reconhecida
actividade jornalística que é e tem sido ao longo de anos a de José Viale Moutinho.
Por isso, é com todo o prazer que em nome de Rita Ferro, de José Correia
Tavares e do meu próprio, como membros do Júri desta edição de 2001, me cumpre
saudar o autor de Cenas da Vida de um Minotauro e, nesta hora de solene
consagração, poder repetir com Agustina Bessa-Luís estas palavras: "Eu acho
que a ladeira montanhosa que o Viale descreve é um retiro de inspirações para
o escritor que ama a língua portuguesa. Ouve-se o restolhar da perdiz raiana
e ouve-se um brotar de fontes que só no ano três mil virão à superfície. O escritor
tem isto: não importa contar a corrente dos rios já formados; o que importa
é marcar as nascentes e saber que a água vai romper ali, cor de prata, verde
de ouro, com as lendas suspensas dos cabelos da água".
Texto lido na cerimónia de entrega do "Prémio Literário Orlando
Gonçalves" da Câmara Municipal da Amadora - edição 2001.
Serafim Ferreira, crítico literário
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