É sabido que M. Teixeira-Gomes (1860-1941) sempre se debruçou sobre as questões
estéticas e sociais da época em que viveu e, pela plasticidade da sua escrita
e no equilibrado doseamento da sensibilidade e da inteligência, rompeu com algumas
ideias feitas que, no plano da arte e da literatura, outros desejavam impor através
de um certo "romantismo" e "naturalismo" que tinha os dias contados e de nenhum
modo espelhava a realidade social e humana no começo do século vinte português.
A sua compreensão da arte ou o entendimento do fenómeno artístico revela-se em
muitos passos das Cartas a Columbano, que voltamos a ler com entusiasmo, onde
tece largas e eruditas considerações sobre o que viu e admirou nas suas viagens
de "andarilho" interessado em fruir os prazeres da vida e do mundo depois do cansaço
e desilusão da política no tempo da Primeira República portuguesa. E Teixeira-Gomes
confessa:
"Não será por falta de viajar que se me não apurou o sentido estético;
mas diferente de dizer "gosto" ou "não gosto" é explicar "porque se gosta" ou
"porque não se gosta". E serão realmente essas explicações necessárias? Não
bastará registar, com cuidado e probidade, as sensações experimentadas diante
das obras de arte, e dar assim ao leitor um pouco de apoio, que lhe sirva para
quando ele as vir com os seus próprios olhos? Explicar é definir e nada há mais
difícil de resumir, mais incoercível do que seja a definição da "obra de arte".
Mesmo se formos por partes, e quisermos aprender qual seria o fim principal
e palpável da arte. Talvez destacar o prazer que a vida causa em todas as suas
manifestações saudáveis. Mas isso é tão vago e exclui tanta forma de beleza!"
(pp. 123-124).
Nas muitas e variadas referências que se perdem na compreensão e fortalecimento
de uma profunda amizade, em período que se espraia entre Janeiro de 1926 e o
posfácio final de Dezembro de 1931, já depois da morte do pintor, as Cartas
a Columbano de Teixeira-Gomes ainda nos falam, na distância dos anos, desse
"discurso" literário e artístico de dois grandes espíritos da cultura portuguesa.
O autor de Maria Adelaide (1938), desterrado voluntariamente em Tunes,
desiludido da política e convencido ser a literatura e a arte o seu motivo principal
para encher as horas desse "exílio" norte-africano, pretende tão-só discorrer
sobre o que vê e aprecia, tendo em conta, como tantas vezes acentua, que o seu
destinatário é um espírito e exemplo de "dignidade intelectual, moral e estética",
capaz só ele de entender, em questões de gosto artístico, as preocupações
estéticas evidenciadas em larguíssimas passagens desta correspondência sem resposta.
Um solilóquio que se cruza com as viagens e visitas a museus e galerias
de arte, mas por onde escorre, na fina observação da sua própria linguagem,
o sentido apurado do bom gosto literário de Teixeira-Gomes, configurando essa
visão globalizante da vida e do mundo, por vezes reforçada pelo sentido das
suas viagens e nos contactos com outras gentes, para exprimir essa consciência
pessoal de ser "anti-naturalista, anti-romântico ou anti-religioso", não por
ser essa uma das vertentes por onde passou o advento republicano em Portugal,
mas pela força e expressividade criadora das suas histórias e prosas, ou em
muitas das suas cartas, como nestas a Columbano em que de forma superior se
confirma, em excelência literária, essa tantas vezes decantada singularidade
discursiva.
Na forma esfuziante e viva como fala ao seu Amigo de muitos anos, esse Columbano
já quase no fim da vida, é verdade, suportando apenas o estímulo e companheirismo
dos elementos do "Grupo do Leão", o que o autor de Novelas Eróticas (1935)
mais coloca em destaque, sem prosápia nem excessivos floreados estilísticos
para se impor aos olhos do Amigo a quem dirige os seus "discursos", é quase
sempre a inquietude ou surpresa, o espanto ou admiração de uma tela de Miguel
Ângelo ou dos frescos de Filippe Lippi, da capela em que repousam os restos
mortais do celebrado cardeal de Alpedrinha ou do génio de Bernini afirmado na
cripta da catedral de Pádua, nas suas andanças artísticas em viagem por Pisa
ou Florença.
Mas, na forma de consolidar essa amizade, o que serve de pretexto nas Cartas
a Columbano (e esse é de facto um dos aspectos mais ricos desta correspondência
quase sempre marcada pelo relato alucinado, como acentua Urbano Tavares Rodrigues
no prefácio a esta reedição, "do convívio íntimo e contínuo com a atormentada
obra de Miguel Ângelo" na estada de Teixeira-Gomes em Florença, "a ponto de
o obrigar, como confessa, a transferir-se para o cenário sereno de Pisa". E,
nessa intenção profunda de tudo contar e dizer ao Amigo, nas surpresas e impressões
de um contacto directo e sentido com a arte, o "solilóquio" interior ou dito
em voz alta se consolida na obra do autor de Gente Singular (1909) como
autêntica e pessoal reflexão e meditação acerca dos problemas e valores estéticos
e humanos de que soube dar conta em muitas cartas aos amigos, para reafirmar
uma vez e sempre a posição amoralista das suas "cartas sem moral nenhuma"
no propósito claramente irónico e crítico de denunciar ou de esclarecer, de
criticar ou de descrever, na vertigem sensual da paisagem e na observação de
todas as coisas em seu redor, o que constitui corpo e vida da sua excelente
arte literária.
E, no fim de contas, podermos dizer ainda com Urbano Tavares Rodrigues, que
nas Cartas a Columbano se evidencia "discretamente a soma de conhecimentos
de M. Teixeira-Gomes e sobretudo nelas perpassam a finura, o encantamento de
viver, o dom de admirar e de amar carnalmente as artes plásticas que dele fez
um dos grandes viajantes europeus da sensação estética da primeira metade do
nosso século".
Serafim Ferreira
Crítico literário
M. Teixeira-Gomes
CARTAS A COLUMBANO
Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues
Ed. Bertrand / Lisboa - 3ª. edição.
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