Trata-se antes de mais de uma forma simpática e muito
cordial de celebrar o centenário de nascimento de José Régio (1901-1969) e de
Vitorino Nemésio (1901-1978) e ao mesmo tempo estabelecer o percurso biográfico
e as primícias literárias na Coimbra dos anos 20 e 30, ainda na lembrança da
Presença ou da Revista de Portugal a que ambos estiveram ligados
como principais responsáveis na companhia de Miguel Torga, Afonso Duarte, Branquinho
da Fonseca, João Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt, entre outros. Mas Carlos
Santarém Andrade soube realizar um trabalho ensaístico-biográfico com todo o
rigor e o entusiasmo da sua formação de bibliotecário que uma vez mais revela
o amor pela cidade do Mondego e assim mesmo nos explica as intenções no pórtico
de abertura: "No centenário do nascimento, Coimbra volta a juntá-los, redivivos,
e as rugas do tempo não escondem os rostos juvenis que, há oitenta anos, esperançosos
e sonhadores, chegaram à Cidade e iniciaram o percurso que vamos agora, de novo,
acompanhar".
E é pelas páginas deste livro, apresentado com grande qualidade gráfica e
valorizada com diversos documentos iconográficos de Régio e Nemésio, que se
retoma o contacto com os primeiros livros publicados em Coimbra no tempo de
serem ainda estudantes (Régio, Poemas de Deus e do Diabo, 1925 e Nemésio,
Canto Matinal, 1921) ou se evocam os sonhos de outras aventuras literárias
que se consumam na criação de jornais e revistas que ao longo dos anos se revelaram
como admiráveis pontos de referência da modernidade poética e ensaística da
nossa criação literária. Régio chega à cidade do Mondego para frequentar Filologia
Românica e escreverá mais tarde: "Eu, porém, queria ir para Coimbra! Sonhava
com a minha Coimbra de António Nobre, com a boémia de Coimbra, com a paisagem
de Coimbra, com o romantismo e todos os mitos mais ou menos poéticos de Coimbra...,
não podia, não podia deixar de ir para Coimbra! Até este nome cantava - e ainda
canta - aos meus ouvidos." (Régio, Confissões dum Homem Religioso,
p. 67).
Mas sabemos como o autor de A Velha Casa se tornou, ao longo da vida,
um escritor sempre muito exigente com os problemas da verdadeira arte que é
a literatura, quando assumida em plena autenticidade como no seu caso pessoal,
porque nunca pactuou com os conflitos fáceis de grupos ou escolas literárias
e sempre procurou novos caminhos para dar firme e verdadeira expressão à sua
voz de poeta, romancista, contista, ensaísta e dramaturgo. E, embora tenha sido
reconhecido como um grande poeta da primeira metade do século passado tão próximo
de nós, Régio foi um dos nossos ensaístas que melhor soube interpretar os universos
literários de Camões, Camilo, Mário Sá-Carneiro, António Botto ou Florbela Espanca,
analisando as suas obras à luz de postulados estéticos que adoptou e prosseguiu
até ao fim da vida com uma profunda coerência. Mas nesse jogo de glória um tanto
mundano como é o das letras, Régio não fez a sua obra em mais de quarenta anos
de constante criação literária, mas foi sobretudo feito por ela, nas
coordenadas traçadas desde o começo como neste livro de Carlos Santarém Andrade
se pode reconhecer, e assim a sua obra permanece viva e é de leitura obrigatória
nas sucessivas reedições de livros essenciais como Jogo da Cabra-Cega
ou os cinco volumes do ciclo romanesco de A Velha Casa, mas também no
teatro e em especial na poesia, com merecido destaque para o livro inicial Poemas
do Deus e do Diabo, Biografia (1929) ou Cântico Suspenso (1968),
como aliás é bem evidente num dos seus poemas mais conhecidos e declamados como
"Cântico Negro": A minha vida é um vendaval que se soltou / É uma onda que
se alevantou. / É um átomo a mais que se animou... / Não sei por onde vou, /
Não sei para onde vou, / - Sei que não vou por aí!.
Por sua vez, a evocação feita por Carlos Santarém Andrade em relação
a Vitorino Nemésio é muito mais breve, apesar de ter permanecido em Coimbra
por mais tempo do que Régio, mas nem por isso deixa de ser expressiva nos traços
dados da sua personalidade, dos seus amigos mais chegados, dos projectos literários
realizados e, sobretudo, da actividade profissional que inicia na cidade "sua
madrinha". Mas coloca em destaque com toda a clareza as peregrinações do autor
de Varanda de Pilatos e estabelece o pano de fundo que determinou a exigência,
a beleza e a coerência da obra literária de Nemésio no correr dos anos, a par
de uma admirável carreira de professor universitário e de grande comunicador
que ficou célebre com as suas conversas no programa televisivo "Se bem me lembro".
E poder alcançar o auge da criação romanesca com Mau Tempo no Canal,
um romance que data de 1944 e se afirma como a "epopeia" na sua "ilha perdida",
ou memória viva de um microcosmos de insularidade, onde a admirável figura de
Margarida Dulmo se ergue como uma das personagens mais empolgantes da ficção
portuguesa do século vinte, e nessa obra-prima se observa, como afirmou Eduardo
Lourenço, a clara e determinante "capacidade mimética e transfiguradora que
fez de Nemésio e da sua obra uma voz inconfundível da nossa modernidade literária".
Por tudo isto, na leitura agradável deste ensaio de Carlos Santarém Andrade
o que permanece como a forma de celebração de dois dos maiores escritores portugueses
do século passado que viveram e se formaram em Coimbra é esse entusiasmo literário,
a par de uma profunda investigação cultural, que se transmite sobretudo aos
leitores que, se acaso não tiveram nenhum contacto com a obra de Régio ou de
Nemésio, encontram em tão minucioso trabalho as pistas necessárias para a descoberta
dos verdadeiros "sinais" que tanto marcaram ou influenciaram os trajectos literários
dos autores de Histórias de Mulheres e de O Paço do Milhafre.
Serafim Ferreira
crítico literário
Carlos Santarém Andrade
A ENVOLVÊNCIA COIMBRÃ DE RÉGIO E NEMÉSIO
Ed. Câmara Municipal de Coimbra / 2001.
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