Na febre consumista que muito tem dominado a moderna literatura portuguesa
e se afirma hoje como um fenómeno estranho num país em que pouco
se lê tão pouco e os índices de literacia são os
que sabemos e as estatísticas confirmam, não se entende bem como
há espaço para que certos escritores (e em especial algumas "escritorecas",
madames Du Veuzit com muitos anos de atraso) que escrevem a metro, com muitos
erros e sem gramática (e não quero agora dar exemplos disso, era
o que me faltava), contando histórias já sabidas, embrulhadas
numa linguagem enfeitada de palavrões ou de lugares-comuns (contando
"historietas" como no "lixo televisivo" que passou a ser
uma forma de comunicação só porque alguns entendem que
se "deve nivelar por baixo" - e é disso "que o povo gosta"
e as audiências assim o confirmam), possam escrever livros que rapidamente
aparecem reeditados e as Rebelos, as Correias, as Lobatos, as Romas, os Aroucas,
os Zinks e outros mais logo se orgulham de terem leitores, os seus livros vendem-se
e vieram para ficar. Mas como eles e elas se enganam a si mesmos! Nos anos vinte
e trinta, eram os Abel Botelho, os Antero de Figueiredo, os Manuel Ribeiro e
os Júlio Dantas os que tinham mais leitores, num tempo em que ainda se
não lia Pessoa, Sá-Carneiro, Almada Negreiros ou Raul Brandão.
E sabemos hoje o destino dos primeiros: foram para o lixo, só reaparecem
quando os "ratos de biblioteca" ou alguns curiosos das "coisas"
literárias" resolvem remexer em livros velhos e sem préstimo.
Mas, repetimos, quanto aos primeiros, a esses que abundam hoje em edições
sucessivas, que escrevem aquilo que escrevem, com a sabida consciência
que têm de que em literatura o que importa é o negócio,
sim, o bom negócio, já sabem o destino do produto que vendem às
grosas, uns livros atrás de outros, um sucesso de leitura e de consumo
indesmentível num país de analfabetos - esses já sabem
o que o espera porque é esse o seu reino. Por mim, digo e repito que
não leio nem empresto os seus livros! Adiante.
Mas é oportuno lembrar para que serve a literatura (claro,
a melhor literatura, entenda-se) e o que em si ela representa na formação
cultural do indivíduo: e isso sabemo-lo todos e sabem aqueles leitores
que lêem para lá do que aparentemente está escrito, que
sabem olhar o espaço talvez invísivel, mas onde o visível
se vê, se sente, se grita e nos comove até ao sangue. A função
da literatura deve ser actuante, no mais profundo sentido, mesmo em todos
os sentidos. Em tempos Sartre declarava: "Não considero que um intelectual
exista sem ser de esquerda. É certo que há pessoas que escrevem
e pertencem à direita. Mas, para mim, não basta que um homem faça
funcionar a sua inteligência para que seja um intelectual." Que cada
leitor se interrogue e veja se nela não actuou, de certo modo, um livro
que leu e de que muito (ou pouco) gostou. Sim, o nível de actuação
política, filosófica, moral, estética ou ideológica
está exactamente na forma como cada leitor saber ler e aderir
ao que um escritor lhe transmite e oferece sem artifícios - a não
ser, como parece evidente, os artifícios da própria arte. O "espaço
literário" é aberto, total e absolutamente povoado: as visões,
sonhos e fantasmas de cada escritor são afinal de todos nós: apenas
através da sua obra, pela criação literária, esses
valores se transformam, se alteram e podem mesmo, à maneira de Rimbaud,
mudar a vida. Não é para agradar a ninguém que um
homem se faz escritor, sofre pela sua arte, dá tudo por ela, se entrega
com coragem e persistência num caminho de realização como
qualquer outro. E quantos escritores se não interrogam ainda para que
serve, no fim de contas, o que escrevem, os anos que levam e consomem na elaboração
de uma obra que pode ser depois esquecida na penumbra das bibliotecas. Mas dá
prazer, um imenso e saudável prazer, saber-se que houve pelo menos um
leitor, ainda na intenção gideana, um único que seja, e
a função da literatura está (estará?) justificada.
É evidente que qualquer escritor faz o seu jogo, cumpre
as regras que lhe parecem apropriadas para a inventariação de
uma "realidade" que pode não ser mitificada nem mistificadora,
antes transmutada através de outros valores morais, sociais, estéticos
ou filosóficos. Mas existe a obra e o leitor, existe o circuito editorial
por onde tudo passa - e nesse circuito é que pode haver artifício
ou falta de verdade, mas como em tudo o que é da vida, sabemos que há
coisas que nem a nós dizemos em voz alta, mesmo que saibamos que a literatura
é sempre posta em questão nos seus elementos essenciais: ser ou
não uma forma de comunicabilidade com os outros, ser ou não um
modo singular e pessoal de transformar a vida em destino. O livro, qualquer
livro, não pode nunca (embora o seja hoje com normalidade) ser encarado
como simples objecto comercial, porque ainda se exige (quem exige?) que
a literatura seja essencialmente uma forma aberta e sincera de comunicação,
intervenção e diálogo com os outros, que somos todos nós:
os que procuram através do livro "encher o vazio" que esta
vida agitada, asfixiante e consumista quase nos obriga a pôr de lado.
Mas sem subterfúgios nem a imposição de falsos valores.
Sem as trombetas publicidade nem as cumplicidades dos vizinhos e dos amigos
que têm assento nos jornais e proclamam que os livros que têm qualidade
são aqueles que muito se reeditam, talvez para fazerem passar essa ideia
de não haver outros escritores que mereçam ser lidos. E é
bem claro que sabemos que ainda hoje estão mais próximos de nós
escritores como Irene Lisboa, Marmelo e Silva, Faure da Rosa, Maria Judite de
Carvalho, Soeiro Pereira Gomes, Manuel Mendes, Rodrigues Miguéis, José
Régio, Maria Velho da Costa ou Luísa Dacosta, apesar de os seus
livros não terem a atenção cultural que deviam ter, ao
contrário do que se passa com esses "autores de manivela" que
começámos por referir. Mas resta-nos sempre a consolação
de que a literatura é para servir (serve-se à boa mesa
literária quando se justifica e o festim não tem de ser acompanhado
pelas campanhas do "marketing" editorial ou outro), não é
desculpável que participemos nesse quase esquecimento colectivo de obras
e autores dos mais importantes da nossa cultura e sobretudo da história
da literatura portuguesa. Mas o tempo dirá quem tem ou não tinha
razão e qual será o destino desses livros que se vendem às
grosas e muito pouco ou nada têm a ver com a literatura. Alías,
como se passa com os êxitos da música "pimba" ou da pintura
de lágrima ao canto do olho. Mas que encham os bolsos, sim, e isso lhes
sirva para ter casa na praia ou no campo, e com piscina, mesmo para quem não
sabe nadar...
Serafim Ferreira
crítico literário
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