Nascido com o século XX (1901-1980), numa Lisboa ainda enxameada
de claras e nítidas referências aos valores transmudáveis
na viragem do tempo e do que sobrara de um certo comportamento conservador nas
relações humanas, José Rodrigues Miguéis não
podia, nos seus anos de infância, juventude e de formação
académica, ficar indiferente ou não ser influenciado pelos sobressaltos
ideológicos e sociais que o começo do século vinte impôs
a vários níveis da mentalidade portuguesa e sobretudo nos actos
e atitudes das gentes da capital a que pertence a acção e as personagens
da sua vasta e rica galeria literária. Tendo sido, ainda no tempo de
estudante de Direito, um desses jovens que em 1922 aderiu ao espírito
renovador da "Seara Nova", o autor de Léah cedo avançou
no sentido de ser, nos altos e baixos da sua posição literária
e intelectual, uma das vozes que através da ficção melhor
retratariam, em páginas de profunda humanidade e de acentuada subtileza
psicológica, os costumes e os comportamentos humanos das gentes que se
cruzariam no seu caminho de escritor.
De facto, desde Páscoa Feliz (1932) até
Escola do Paraíso (1960), com alguns desvios no percurso para
ensaiar outras formas de expressão em contos e histórias breves,
marcadas por uma fina ironia ou de evidente sabor policial que sempre define
uma das vertentes deste grande escritor português, José Rodrigues
Miguéis não deixa de traçar com rigor essa "memória
descritiva" que manteve em vida longa e larga de muitos anos, revisitando
de longe uma Lisboa que, no instante de escrever as suas histórias, lhe
serviu como matéria-prima e o fez atravessar tantas vezes esse imaginário
da infância e adolescência que tão nitidamente caracteriza
a sua obra de ficcionista. As suas andanças pela Bélgica em trabalhos
de investigação pedagógica que depressa abandonou e o facto
de se radicar nos Estados Unidos a partir dos anos trinta, não deixaram
de definir uma obra que, em rigor, nunca perdeu de vista uma constante correlação
entre as paragens nova-iorquinas e a capital portuguesa que foi matriz do seu
conhecimento da vida e do mundo.
Por isso, em Escola do Paraíso, Rodrigues Miguéis
rememora os conflitos de infância e desvende aos nossos olhos o cenário
e a realidade humana e social desses anos tumultuosos que se seguiram à
implantação da República e é pelas páginas
deste belíssimo romance que melhor se pode entender a vida e os hábitos
de uma Lisboa de decisivas mudanças, porque através de um quase
mimetismo saudosista (e o saudosismo foi, nos anos 10 e 20, como é bem
sabido, uma das fortes correntes poéticas e ideológicas que mais
discussão levantou entre nós), o que Rodrigues Miguéis
fez muitos anos mais tarde foi rever através da sua memória e
imginação uma cidade ainda muito próxima de como Eça
a retratou e Cesário a cantou, mesmo na caricatura satírica dos
gestos e modos de uma mentalidade claramente pequeno-burguesa. E assim Páscoa
Feliz ou outras histórias como as de Léah, que agora
relemos com prazer, é sem dúvida uma espécie de "requiem"
por uma Lisboa que desejava mudar profundamente e pouco conseguiu mudar, porque
afinal o "28 de Maio" logo impediu que continuassem a soprar esses
ventos de mudança.
Herdeiro natural da prosa e mesmo do sentido humaníssimo
de Raul Brandão, dotado de uma capacidade criadora e de um estilo que
tantas vezes nos lembra a prosa irreverente e adornada de um Eça, mas
sabendo fazer a necessária ligação ou interdependência
estética entre o que sobrou do naturalismo e do realismo do século
XIX e o movimento neo-realista (a que não se aliou, é certo),
toda a obra de José Rodrigues Miguéis se consolida como "corpo
vivo" de uma realidade humana e social que, entendida de longe nos postulados
da sua formação e nos valores burgueses de que sempre partiu,
se afirma na dimensão humana das próprias personagens, no estilo
rico de sugestões e matizes, mesmo quando repassado por um magoado sentido
de ironia, e sobretudo nessa forma de escrita arejada e subtil, servida por
uma técnica romanesca bem estruturada. Na verdade, não existe
nos livros de Rodrigues Miguéis nada que esteja a mais ou menos: no rigor
e timbre próprios da sua prosa e na força de tudo o que narra,
revisita os lugares e evoca as pessoas que consigo andaram em sobressalto de
muitos anos e é dessa "massa" que modela uma obra que se revelara
de uma ímpar qualidade estética na literatura portuguesa da segunda
metade do século passado.
Assim, na releitura de Léah e outras histórias
(1958), galardoado então com o "Prémio Camilo Castelo
Branco" da Sociedade Portuguesa de Escritores), o que mais nos agrada salientar,
neste ano comemorativo do centenário do nascimento de Rodrigues Miguéis,
é esse sentido bem memorialista transfigurado em belas páginas
de ficção que se ergue como um substrato rigoroso e depurado da
realidade circundante. Histórias ou novelas como as de "Léah"
ou "Saudades para Dona Genciana" que, a seu modo, se erguem como retratos
exemplares da consciência burguesa enleada nos seus próprios interesses,
conferem à ficção do autor de Uma Aventura Inquietante
essa dimensão humaníssima, muitas vezes crua ou irónica,
divertida ou satírica, de compreender o mundo à sua volta e as
pessoas dentro dele: não esconde nada dessa realidade, não disfarça
nada em subtis e subentendidos juízos de valor, fica muito pouco por
revelar da mentalidade ou do modo como se cruzam, num jogo de relações
e outros interesses, as suas histórias por esse sentido visível
que faz descobrir ou entender para lá do que por vezes nos escapa ou
o olhar não alcança. E essa ironia quase levada ao exagero das
próprias situações (como em "Uma Viagem na Nossa Terra"
ou "Pouca Sorte com Barbeiros") faz-nos compreender assim mesmo, como
se as imagens desfilassem diante dos nossos olhos, as múltiplas referências
que percorrem estas histórias ou ser ainda essa a forma de regressar
à infância ou adolescência, na lembrança de um simples
passeio familiar ou no distante ecoar dos tiros na tarde do regicídio
de 1908.
Mas, entre o sonho e a saudade, o passado e o presente (como
nas histórias "Regresso ao Castelo da Pena" ou "Uma Carreira
Cortada"), os anos se recuperam pelos fios da memória e na pista
de alguns amores incompreendidos ou não correspondidos, como se o tempo
não tivesse morrido e a imaginação à solta povoasse
de outros enredos essa atitude pessoana de uma certa "Lisboa revisitada"
pelos lugares e casas de várias cores e histórias cruzadas que
se não perderam nem esqueceram. E por aí se desemboca nessa obra-prima
da ficção portuguesa que é, sem dúvida, "Saudades
para Dona Genciana", através da qual Rodrigues Miguéis, em
acto criador que muito se prende à visão cinematográfica
que oferece um pequeno mundo vivido em pensão lisboeta, procura espelhar
um sentido revivalista da cidade que está longe e por ela recuperar essa
grandeza de alma, nos sobressaltos e interesses que sempre circulam à
volta de Dona Genciana, nos males e dores que a inquietam, nos amores passageiros
ou interesseiros de quem não pode escapar às malhas que o império
do corpo tece.
Por tudo isto, sim, não temos dúvidas em dizer
que José Rodrigues Miguéis, no exemplo e força criadora
da sua obra, é uma das vozes inconfundíveis que ocupa um "espaço"
próprio na nossa moderna ficção, cujo discurso sempre se
renovou através de uma profunda e séria visão humanista
da vida e do mundo. E assim pertence por direito a esse núcleo de escritores
que, mesmo sem terem muitos leitores, utilizam as vivências pessoais como
"matéria" expressiva e criadora dos seus romances.
Reler, pois, o autor de Léah, repetimos, neste
ano centenário do seu nascimento, é entrar nos domínios
da melhor prosa de ficção do nosso tempo e redescobrir uma obra
que em José Rodrigues Miguéis se afirma verdadeiramente exemplar.
Serafim Ferreira
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José Rodrigues Miguéis
OBRAS COMPLETAS
Ed. Estampa / Lisboa. |
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