Na variedade e diversidade da sua obra literária, Fernando Namora
é um dos raros escritores portugueses que mais contribuiu para a justa
interpretação do que escreve, tanto na ficção e
na crónica como na poesia ou nos "cadernos" de escritor. Mas
não há dúvida que é no conjunto dos seus "cadernos",
desde Um Sino na Montanha (1968) até Sentados na Relva (1986),
que mais de perto se pode descobrir ou entender a visão humanizada das
suas personagens, enredos, conflitos, terras e gentes: nessas páginas,
o autor de O Trigo e o Jogo discute consigo mesmo, confessa as suas ideias,
retrata terras e lugares em andanças de viajeiro que "anda e vê"
com atenção o mundo em redor, define algumas das coordenadas da
sua pessoal forma de ser "escritor-romancista", desvenda as linhas
essenciais da sua formação estética e ideológica.
Em muitos desses textos, Namora passa em revista, de tempos a tempos, a nossa
própria realidade humana, social e cultural, confronta-a com a de outros
países, anotando em pormenor os aspectos que uma atenta observação
não deixa escapar. E seja o quotidiano lisboeta, fixado em pormenores
que sempre se ligam a um entendimento do mundo à sua volta, seja em redor
das paisagens e gentes alentejanas (e excelentes se revelam algumas páginas
evocativas de Castelo de Vide, Marvão, Portalegre ou Monsaraz), seja
mesmo para nos falar dos problemas e questões levantadas sobre a literatura
ou a crítica, enfim, a cultura no sentido mais universal, no vivo diálogo
com intelectuais de vários outros quadrantes, o que se afirma nas páginas
de Namora é ainda (e sempre) essa visão realista de pretender
dar do mundo e dos homens que se cruzam no seu caminho, no entusiasmo das ideias
e das paixões mais fundas e sinceras, o "retrato" preciso e
fiel nos contornos ou nos sentimentos que extravasam desse seu inalterável
discurso literário. E por aí se declara implacável nos
registos que faz ou nas ideias que manifesta, mesmo nos protestos que não
pode nem deve calar: "Ser escritor, hoje, em Portugal, é exercer
uma actividade que, apesar de bem castigada com tributos, deve ser das raras
que o Estado desconhece em termos de encorajamento e previdência".
Mas não devemos deixar sem referência muitas das
ideias do texto essencial deste livro Sentados na Relva, publicado três
anos antes da morte de Namora. A propósito das Reuniões Internacionais
de Lahti, na Finlândia, o autor de O Rio Triste pôde participar
em debates literários baseados no facto de ser "a literatura uma
linguagem universal". E, se muitos dos apontamentos, que registou nestas
páginas, se prendem com essa questão sempre tão debatida
em diferentes perspectivas, a verdade é que nos deixa a impressão
agradável de quase sermos, como leitores, um desses participantes sentados
na relva, ao sol, a ouvir Guilevic, Jean-Pierre Faye, Kobo Abe, Claude Roy e
outros. Mas todo o debate se desenrola entre a "posição"
ideológica do intelectual, a "função" da literatura,
o "sentido" crítico da crítica, a "verdade"
e o "rigor" da obra traduzida (e, de passagem, Namora não deixa
sem registo a intervenção de Egito Gonçalves, que ali falou
da sua experiência como tradutor de poetas russos, húngaros, búlgaros
ou checos), a literatura como essencial forma de comunicação entre
os povos.
E, entrecruzando todos esses registos com observações
críticas pertinentes, Fernando Namora faz extrapolar algumas das considerações
para a própria realidade literária portuguesa, com um certo azedume
e amarga desilusão:
"Seríamos tentados a acrescentar Lisboa, mas
Lisboa é outra coisa. Menos perfidamente civilizada e menos eufemística.
Lisboa prefere a navalhada ao virar da esquina, prefere ser rasca. Tece conjuras
na sombra, com qualquer poeta adunco e piloso a distribuir pelo gang lâminas
de barba com que golpear as canelas da vítima, cospe grosso, verte bílis
- mas tudo isso numa Lisboa rasteira. E à meia volta. Com a ambígua
excepção dos velhacos importados, que, ao aclimatarem-se, refinam
o veneno luso com um tempero cosmopolita".
Ora, nestes sentidos desabafos ou nos subentendidos que ficam
nas suas observações, Namora tenta, sobretudo, fazer o contraponto
da nossa realidade literária com outras que a sua experiência de
habitual participante em reuniões e encontros internacionias não
pode ignorar. E é realmente justo que o tenha feito com lucidez e crispação,
tivesse mesmo posto o dedo na ferida ainda hoje por sarar do velho conflito
entre críticos e criadores. Na literatura ou nas artes plásticas,
no teatro ou no cinema. Mas sabemos que esse inalterável conflito não
acontece apenas entre nós, as mesmas armas se utilizam noutros quadrantes,
com idêntico cortejo de ódios, atrevimentos e protestos. E Namora
pôde observar: "Com efeito, a chamada indecência da vida
literária não nos é exclusiva, não. A crestadora
inveja (quem disse que a inveja é o mais dramático sinal da frustração?),
o golpe baixo, a mesquinhez e a torpeza estão longe de ser estigmas nossos".
Porém, digamos que não se trata de uma "nova"
crítica desejar impor-se à "velha" crítica (se
esta na verdade existe) ou se alguns "académicos" querem ter
a última palavra na imposição de valores. Todos sabemos
que existem diferentes padrões e formas de encarar a arte (sobretudo,
a criação literária) e que, enquadrando-se essa mesma arte
e criação no seu tempo e espaço próprios, a crítica
deverá necessariamente corresponder aos mesmos postulados estéticos
e ideológicos. Ao rigor da criação artística, o
sentido crítico não pode ser mais que o "processo" imediato
de estar à mesma altura e assim melhor a compreender, justificar e impor,
porque como um dia Sartre declarou, "a função da obra
de arte é mostrar, demonstrar, desmitificar e dissolver todos os mitos
e feitiços num banho de ácido crítico". Mas, no
fim de contas, o jogo em que o escritor ou o artista se empenha, se arrisca
e compromete poucas vezes deve alguma coisa ao "acto crítico",
seja ele teórico, formalista ou até impressionista. Criticar
é e sempre foi apostar, dizer o que vale e não vale, segundo as
opções e preferências pessoais. Criticar é ter uma
clara consciência de exercer um direito que a todos cabe, é o modo
de alargar esse "diálogo" e fazer com que o leitor ou espectador
menos prevenido melhor entenda a obra que lê, escuta ou tem diante dos
olhos.
Ora, levantando estas questões e não escondendo
as razões dos protestos que se alargam através dos seus "Cadernos
de um Escritor", Fernando Namora pôde retomar, de forma coerente
e renovada, o mesmo itinerário intelectual de quem nunca se mostrou indiferente
aos conflitos do mundo e por isso soube abordar problemas e ideias que, no fundo,
ainda hoje se questionam quando se fala de crítica e de literatura. Assim,
pelas páginas deste excelente livro que é Sentados na Relva,
e relemos com o mesmo interesse e prazer de há muitos anos, perpassa
esse sentido crítico e de responsabilidade de um escritor que não
deixou de falar e dizer do seu pessoal "modo de ler" e de entender
os homens e o mundo.
Trata-se de páginas de confissão, denúncia,
debate de ideias ou simples apontamentos de viagem, mas foi também por
aí que Namora consolidou sem dúvida uma obra que é das
mais expressivas da literatura portuguesa do século XX. Sem nenhum favor
e quase sem necessidade de o repetir na memória ainda viva de quem partiu
em Janeiro triste de 1989, quase às portas de fazer setenta anos.
Serafim Ferreira
Crítico literário
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Fernando Namora
SENTADOS NA RELVA
OBRAS COMPLETAS
Pub. Europa-América / Mem Martins.
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