Na reedição da Poesia Completa de Cesário
Verde, livro que trago debaixo do braço depois de passar pela "Bertrand"
da avenida de Roma (passe a publicidade), páro junto do pequeno jardim
na rua dona Estefânia que tem o seu nome, observo o busto de bronze que
permanece aqui desde o centenário do nascimento, revejo Cesário
na memória dos anos e dos tempos, e sei do prazer que tive na descoberta
dos seus poemas, sonhados para lá dos limites da vida prática
que levou, e ainda o posso imaginar ao balcão da loja de ferragens de
seu pai, na rua dos Fanqueiros, mesmo no centro da baixa pombalina e lisboeta.
E não sei entabular outro diálogo a não ser pela leitura
dos seus poemas ou no olhar atento do retrato de Columbano que por aí
anda espalhado em vários livros ou de um desenho sério e grave
de António Fernando. Porque a provada amizade de Silva Pinto, seu irmão
de jornada e de destino, tudo pôde recuperar da poeira das revistas e
dos jornais em que ficaram muitos dos seus poemas, e houve quem amasse tanto
Cesário ao ponto de fixar o texto correcto ou anotar muitas das suas
cartas aos amigos. E por isso o Livro de Cesário se lê e
relê no anseio de reinventar o tempo e poder imaginá-lo perdido
ou não nesta Lisboa, tantos anos passados, quando as pessoas já
não andam ao ritmo do coupé ou do landau, mas ainda
se vestem pelos sinais que foram do seu deslumbramento e cristalização:
os anos passaram e mais atento parece ter ficado ao que corresse à sua
volta - levou para a cova a sentida desilusão de não lhe ligarem
muito, não serem lidos os seus versos e por isso sempre desabafava nas
cartas aos amigos, e numa delas dizia a Macedo Papança, que foi o Conde
de Mosnaraz, em Agosto de 1880, depois de ter publicado esse belo poema "Sentimento
dum Ocidental" em homenagem a Camões: "Ah! Quanto eu ia
indisposto contra tudo e contra todos! Uma poesia minha, recente, publicada
numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve
um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação! Ninguém
escreveu, ninguém falou, nem num noticiário, nem numa conversa
comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal!"
Olho uma vez mais Cesário no silêncio do bronze
em que mora há tantos anos, neste gracioso jardim entre a Estefânia
e o Arco do Cego, não escuto o que já sabia, na memória
que guardo dos passos dados e andados por esta cidade à beira-Tejo, na
lembrança das mulheres que ele amou na fase inicial da sua caminhada
de poeta - Helena ou Clarisse, não sei. E posso ler:
Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.
Percorro depois a rua dos Fanqueiros, desejo olhar a fachada
e o interior da loja de ferragens onde, como gostava de dizer, Cesário
foi um homem positivo e prático na obediência paterna. Mas tudo
se alterou, não vislumbro por aqui sinais desse martírio e cansaço
nas horas em que se esquecia quase de ser poeta e já não passam
por esta rua os corcéis negros a trote como faziam pela rua do Alecrim,
e disso fala num poema, mas ainda se avistam deste recanto as sombras do antigo
Limoeiro e da Sé Velha:
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das
cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
Mas é fácil imaginá-lo "frio, pausado,
calculista como todas as organizações criadas neste meio comercial",
lamentando assim que outros fossem ardentes, imaginosos ou até excessivos
e contribuíssem para esse pressentido desgosto de sempre Cesário
escrever "sobre uma secretária comercial, cheia de papéis,
de livros, de notas", enfim, de trinta mil coisas que fizeram dele um homem
prático. E, por esta baixa pombalina, muitos outros destinos se cruzaram
no fio inapagável dos anos, e talvez tivesse sabido do martírio
sofrido por Pessoa em escritórios comerciais perdido por idênticos
sonhos de poeta, trazendo consigo às cavalitas um Álvaro de Campos
ou um Bernardo Soares, vivendo e sentindo noutras horas o mesmo e inalterável
espírito das pessoas e dos lugares. E disso nos fala:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E no andar calmo dos anos, na desmemória de tudo se
mostrar ligado pelas ruas transversais da baixa pombalina, sempre me recordo
de Cesário e digo para que me oiça que afinal muito pouco mudou
e o que foi de ontem, na visão romântica do mundo e depois na certeza
realista de saber cortar com os parnasianos do tempo, ainda hoje permanece apenas
renovado na simbologia das cores e traços mais visíveis das lojas
e das montras. E os poemas, visões e deslumbramentos de Cesário,
sentidos há longos anos, erguem-se como forma recuperada de ter captado
a imagem exacta da cidade, e tudo isso é claramente visível no
poema "Bairro moderno", dedicado a Manuel Ribeiro de quem poucos hoje
se recordam.
Mas legítimo é supor que no deflagrar da doença
Cesário trocasse a baixa pombalina pelo refúgio da casa de Linda-a-Pastora,
que fica "a duas léguas de Lisboa, e com poucas comunicações
para aí". E nesse seu refúgio campestre e idílico,
que fora antes também um paraíso possível para Garrett,
como o descreve nas Viagens, pôde descobrir os sinais mais perduráveis
dessa boa paz regular, na lembrança das tardes de passeio e de muitas
conversas:
Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
E, na hora final da sua partida, diante do alheamento dos jornais
da época, digo agora que os cronistas do "Diário de Notícias"
ou do "Jornal do Comércio" não tinham razão:
o que Cesário para sempre nos deixou é este seu Livro que
continua a ser lido e estimado, mesmo na pressa que teve em deixar o seu recado.
E por isso todos sabemos como merece bem a glória de estar ainda entre
nós e aqui a nosso lado. E, como conclui o professor Joel Serrão,
na nota introdutória desta reedição: "Eis que se
ouvem já, em surdina, os trilos da flauta mágica duma poesia que
é das mais originais, mais límpidas e mais belas de toda a nossa
literatura".
Serafim Ferreira
Crítico literário
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Cesário Verde
POESIA COMPLETA (1855-1886)
Fixação do texto e nota introdutória de Joel Serrão.
Pub. Dom Quixote / Lisboa, 2001. |
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