A morte do(s) sonho(s) americano(s) começa a 27 de Agosto
de 1964 em Itália, "no bairro mais perdido de Florença, num
cinema que parecia um corredor, com assentos em madeira que não tinham
sido mudados desde a invenção do cinema. Além disso não
tinha havido a menor publicidade."Por um punhado de dólares "
estreia a uma quinta-feira. Vende poucos bilhetes. No dia seguinte há
mais alguns espectadores. Mas aumentam no sábado e no domingo. Chega
a segunda-feira. É o dia mais temido em Itália. Duplicamos as
entradas de domingo. E o milagre começa." (1). Este milagre, é
o do "remake" italiano de um filme japonês, "Yojimbo"
de Akira Kurosawa (1961)", ele próprio vagamente inspirado num romance
policial de Dashiell Hamett "A Ceifa Vermelha". Ao fim de seis meses,
"Por um punhado de dólares", está à cabeça
"box-office" de vários países europeus e é o
início de uma trilogia - seguida com "Por mais alguns dólares"
e "O bom, o mau e o vilão" - que fez a glória de Clint
Eastwood. Para alguns, o justiceiro mal barbeado, de poncho e de cigarrilha,
que encarna o actor americano é uma caricatura. É verdade que
se tornou um cliché, mas a sua impassibilidade mística, a sua
propensão para sofrer e fazer sofrer, fazem-no uma personagem próxima
do universo de Pasolini. Visto sob este ângulo, pode-se dizer que em Itália
o artista popular (Leone) aproxima-se do artista intelectual (Pasolini) ainda
por cima populista.
"Por um punhado de dólares" marca não
só a invenção de um novo sistema formal no seio do cinema
mais comercial, mas também anuncia o fim de um género e o nascimento
da desilusão. O realismo dos "westerns" de Sérgio Leone
enterra o fim do onirismo de Hollywood.
O cineasta popular chega a um estilo cínico e por vezes
truculento, caracterizado por uma concepção ou prática
da encenação (e da música). Partindo de uma vontade econoplasta,
Leone quer desconstruir a lenda, - não "imprimi-la" tal qual
- dar às personagens e aos "décors" uma rugosidade ,
uma vulgaridade ,uma brutalidade verdadeiramente desconcertante (pelo menos
para o início dos anos 60). Desde o início, Leone, que realizou
5 "westerns" em 7 filmes, confessa um desrespeito pela tradição,
que o leva a inovar. "Eu tinha a intenção de trabalhar sob
o jogo de máscaras. Desconstruir o género como já o tinha
feito com o "peplum" ("O colosso de Rodes")".Quase
pós-moderno "avant la lettre", não faz tábua
rasa do passado, mas distorce as convenções e os clichés
do interior para inventar um novo modo de expressão: "tomava o cinema
convencional como base. Depois encarregava-me de demolir os códigos,
e fazer o jogo das aparências acentuando um espírito de jogo de
massacre, para abalar todas as mentiras e falsidades ao contexto histórico
do tempo". Este último ponto - "abalar todas as mentiras e
falsidades" - aproxima-se no fundo do espírito do neo-realismo,
sem influência do qual Leone não poderia, talvez, propor uma visão
tão crua do mítico Oeste americano. "Impus um herói
negativo, mau, realista, integrado totalmente na violência...", clama
o realizador com uma fanfarronice, justificada...
Depois dele, o "western" clássico tornou-se
impossível: "chamaram-me o pai do género - o "western
spaghetti" - só tive filhos bastardos. Nenhum é legítimo.
Alguns epifenómenos brilhantes acompanham o declínio
do género mais especificamente americano: Peckimpah, Cimino, e enfim,
Clint Eastwood, o último cineasta a realizar regularmente "westerns".
Este, adquirindo gradualmente um humanismo Fordiano, continuou a abrir a brecha
do seu mentor italiano, antes de chegar, à sua obra-prima, "Unforgiven",
obra já pressentida por Leone quando dizia: "Nunca vi "westerns"
realistas. E se se mostrasse a verdade, veríamos Billy the Kid a atirar
cem vezes antes de acertar em alguém. O verdadeiro Oeste não teve
nada a ver com o "western".
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares
dos Reis
(1) Todas as citações são tiradas
do livro Noel Simsolo, "Conversation avec Sergio Leone", Édition
Stock.
|